segunda-feira, 28 de março de 2016

Comprar e morrer em "Ruído Branco" de Don DeLillo



“The encounter put me in the mood to shop...Babette and the kids followed me into the elevator, into the shops set along the tiers, through the emporiums and the department stores, puzzled but excited by my desire to buy. When I could not decide between two shirts, they encouraged me to buy both. When I said I was hungry they fed me pretzels, beer, souvlaki. The two girls scouted ahead, spotting things they thought I might want or need, running back to get me, to clutch my arms, to plead with me to follow. The...y were my guides to endless well-being...My family gloried in the event. I was one of them, shopping, at last. They gave me advice, badgered clerks on my behalf...We moved from store to store, rejecting not only items in certain departments, not only entire departments but whole stores, mammoth corporations that did not strike our fancy for one reason or another. There was always another store, three floors, eight floors...I shopped with reckless abandon. I shopped for immediate needs and distant contingencies. I shopped for its own sake, looking and touching, inspecting merchandise I had no intention of buying, then buying it...I began to grow in value and self-regard. I filled myself out, found new aspects of myself, located a person I'd forgotten existed. Brightness settled around me. I traded money for goods. The more money I spent, the less important it seemed. I was bigger than these sums. These sums poured off my skin like so much rain”


Ruído Branco tem um tom surreal, fantástico, entre a fantasia e a ficção científica. Mas a narração é implacavelmente objetiva. O pouco espaço dos sentimentos é apresentado através de um viés exclusivamente analítico. O próprio medo é uma equação a ser resolvida. A morte é um evento desagradável, como uma festa do escritório, que se quer evitar. O tom surreal vem do que alguns pensadores chamaram de virada ontológica no capitalismo: não apenas o sujeito foi coisificado, reduzido às meras tarefas mecânicas de produzir e consumir, como o objeto, a mercadoria, foi erguida ao nível do sujeito. A mercadoria fala, canta, dança, seduz, como a cadeira de Marx ou a vassoura de Goethe. As latas de Coca-Cola agora têm escritas em cada uma um nome próprio roubado de seus consumidores. DeLillo descreve da seguinte forma o saque de dinheiro em um caixa eletrônico: “Ondas de alívio e gratidão fluíram sobre mim. O sistema tinha abençoado a minha vida. Eu senti seu apoio e aprovação. O hardware do sistema, o servidor central trancado em alguma sala em alguma cidade distante. Que interação prazerosa. Eu senti que algo de um valor pessoal profundo, mas não dinheiro, não isso, de forma alguma, tinha sido autenticado e confirmado”. Os objetos são a transcendência do sujeito quase irremediavelmente - não fossem os primeiros - imanente. Esta inversão-dissolução também se manifesta na relação entre os grupos sociais. Não há diferença entre classes: um tipo de classe média aparece como único estrato social. As outras diferenças de grupos: entre adultos e crianças, homens e mulheres, também são achatadas em um meio genérico sem diferença. As crianças debatem sobre a morte e a ciência e o sentido em mesmo nível que os adultos. Às vezes, com superioridade. Os papéis sociais se mantêm, mas apenas maquinalmente, como categorias ocas: cumpre-se o papel de marido ou de filha como um empregado cumpre o papel de faxineiro ou escrivão.
A vida pendular dos personagens balança entre a alegria do consumo e o medo da morte. A presença constante do segundo em todas as suas manifestações possíveis - catástrofe ambiental (airborne toxic event), complicações de saúde (envenenamento por Nyodene D.), morte do companheiro (Jack e Babette), esporte radical (sentar-se numa sala com cobras venenosas) - contrasta com o calor reconfortante, sempre à mão, das compras. A mercadoria é invulnerável a morte. “Aqui [no mercado] nós não morremos, nós compramos”. O consumidor que se banha nas compras sente que adquire por um curto período sua imortalidade. Eis o caráter viciante do consumo: readquirir aquele efeito que se esvai rápido demais. A droga fictícia, Dylar, que promete afastar definitivamente o medo da morte, é a tentativa frustrada de tornar permanente o efeito curto do vício de comprar. Há algo nesta prosa da colagem dadaísta, a sobreposição em um mesmo plano de elementos de origens distintas. Literariamente, substantivos com origens semânticas muito afastadas seguem um ao outro sem constrangimento, preposição ou verbo de ligação. Mas aqui o choque de elementos de origens distintas é mais calculado: objetos pertencentes a esferas opostas da vida humana é que são listados como equivalentes. “O vazio, o senso de escuridão cósmica. MasterCard, Visa, American Express”. A menina que dorme profundamente é observada por longos minutos pelo narrador que espera tirar do seu balbucio puro e infantil algum tipo de uma mensagem: Toyota Celica.
A universidade, local de trabalho do narrador-protagonista Jack Gladney, aparece como espaço em que professores-celebridade inventam áreas de estudo. Hitler Studies, Elvis Studies. Da mesma forma com que a mercadoria passa seus efeitos inorgânicos ao consumidor, o objeto de estudo passa seu poder de fascinação para o professor pesquisador. Jack diz que o reitor “sugeriu fortemente que eu ganhasse peso. Ele queria que eu crescesse para fora em um Hitler”. Mas os fatos e a reflexão que adviriam do estudos destas figuras históricas são tratados com a mesma profundidade que as reportagens fabricadas dos tabloides comprados por Babette na fila do supermercado. Tudo pode trazer uma explicação-reprodução do mundo: acidentes de carro, embalagens, a forma com que uma família assiste televisão. Na pluralidade infinita dos pontos de vista, desaparece qualquer resquício de referente histórico ou material. Mas não o real - a morte - como a gigantesca nuvem venenosa que se abate sobre a cidade, subitamente, lembra. A apresentação da academia não é apenas sarcástica, mas também melancólica. Ela toma a inovação às vezes exagerada na ampliação de objetos de estudo como sintoma de um esgotamento da própria possibilidade de pensar. O professor Murray comenta: “Eu entendo a música, eu entendo os filmes, eu até vejo como os quadrinhos podem nos dizer coisas. Mas tem professores inteiros nesse lugar que não leem outra coisa que caixas de cereal”. Jack responde: “É a única vanguarda que temos”.  Como no resto dos dilemas apresentados do romance, não há busca reflexiva de solução, apenas descrição semi-desinteressada e salto para o próximo. “É incrível quantas pessoas ensinam nos dias de hoje. (...) Há um professor para cada pessoa. Toda pessoa que eu conheço ou é professora ou estudante. O que você acha que isso significa”?

segunda-feira, 14 de março de 2016

Horace and Pete e a crise de um certo projeto de masculinidade



Horace and Pete, o novo seriado para a internet do comediante Louis C. K., é uma continuação mais aprofundada de um dos temas centrais do seu humor: a autoironia. Mas enquanto o material dos seus stand up normalmente passa por experiências pessoais e gozações sobre sua própria figura (sua covardia, sua aparência, sua dificuldade em se relacionar com mulheres), em Horace and Pete ele investiga com mais profundidade uma da principais fontes do mal estar: o desajuste entre uma ideia tradicional de masculinidade, em plena decadência, e sua experiência contemporânea de homem branco de meia idade. Este projeto de masculinidade, evidentemente, não é universal: é histórico e bastante localizado. Embora a tensão racial esteja sempre presente, não se debate a masculinidade negra. A palavra nigger aparece uma vez, seguida de cock, gritada inocentemente pela moça com síndrome de Tourette. Este mesmo homem xingado gargalha em outra noite do Uncle Pete que se segura para não xingar um jogador negro, quase desafiando-o a usar a palavra. Louis C. K. está acostumado a falar principalmente de si, ainda que pejorativamente, por isto embora figuras de outros grupos sociais apareçam, o foco ainda é em Horace, personagem que ele interpreta. (A velha Marsha, ex-amante de seu pai, também representa uma ideia decadente de feminilidade que encontra uma reformulação, aparentemente com muito mais sucesso que seu par masculino, nas figuras femininas mais jovens da série). A conhecida formulação de Gramsci sobre a crise política segundo a qual o velho mundo morreu sem que o novo tenha conseguido nascer pode ser transposta para o dilema da masculinidade como representada nesta séria: morreu a ideia tradicional de homem sem que tenha se formado ainda uma nova, ou sem que se saiba o que conservar da antiga na construção de uma nova.
Na série, o homem contemporâneo compreendeu muitos erros que seus pais e avôs cometiam e se esforça para não cometê-los mais. E não apenas por uma pressão social, existente e constante, representada principalmente nas figuras da irmã Sylvia e da filha Alice, mas também por uma convicção pessoal, que custa caro à consciência permanentemente em fuga e culpada. O problema parece ser que não foram apenas os erros de um certo projeto de masculinidade que foram aparados, mas também características socialmente consideradas (ainda hoje) como positivas. O orgulho do trabalho, da manutenção - ainda que compartilhada - da casa, a pressa em se estabelecer como um adulto independente e capaz de prover para seus entes queridos, a constância e confiabilidade, a virilidade sexual e, principalmente, a capacidade de transmitir todos estes “valores”, parece que também se foram, sem levar consigo sua expectativa. Uncle Pete não para de repetir que Horace não é homem como seu pai. E todos concordam com isso, inclusive Horace. Este seriado está longe (às vezes um pouco perigosamente) de uma crítica libertária das posições de gênero. Trata-se mais de um ensaio cênico sobre personagens pegos desorientados em meio a uma transformação: sem a clareza dos jovens, para quem a abolição do modelo parece necessária; e sem a teimosia da geração anterior (representada por Uncle Pete e Marsha), para quem os papéis de gênero pareciam naturais. No segundo episódio, há uma discussão caricata entre um liberal e um conservador. O elogio do debate, em oposição à intolerância, vai apenas até o ponto de desmascarar os preconceitos mais exagerados de uma posição sobre a outra, mas não resolve a tensão, deixando um elemento mediador encontrar pontos positivos em ambos os lados. A mesma posição intermediária, de alguma forma conciliatória, surge na questão de gênero. A assombrosa história, narrada com maestria pela atriz Laurie Metcalf, da esposa excitada além dos limites racionais pela figura idosa e extremamente viril do pai de seu marido é representativa disto. O espectro daquela masculinidade ainda é efetivo, e não apenas de forma negativa. Mas a nova geração não tem mais acesso aos seus poderes. No quarto episódio, Horace já não consegue transar. No episódio anterior, ele se masturba pensando na ex-amante do seu pai, mesmo tendo fugido dos seus avanços no início do mesmo episódio. Uma ex-namorada conta a história de seu novo marido, bonito, viril, com um bom trabalho, que desaparece de forma tão rápida e brutal como apareceu, quase como se essa forma de masculinidade não coubesse mais no mundo.
A divisão do bar em dois lados do balcão mostra o embate entre um tempo passado, que reivindica até as últimas forças este projeto de masculinidade, sabido em plena decadência, e aquele do presente, a partir da contribuição de tipos sociais até então invisíveis neste debate: mulheres, homossexuais, minorias étnicas, etc. De um lado do balcão Uncle Pete, Pete e Steve, reivindicando os cem anos do bar Horace and Pete, do outro lado os clientes habituais e os jovens hipsters encantados, ainda que com ironia e crítica, com a existência daquele pedaço de passado conservado no presente. A irmã Sylvia encarna de forma interessante a relação ambivalente dos outros com esta masculinidade em crise: critica duramente o irmão por sua falta de firmeza e habilidade em conduzir os negócios, em comparação com o pai, ao mesmo tempo em que quer aniquilar a memória deste pai, do qual fugiu sua mãe, libertando-a também. Para ela, o bar - passado de pai para filho, no masculino - é o próprio espaço de masculinidade que deve ser demolido: espaço em que as esposas são espancadas, como ela bem diz e Pete confirma. Do outro lado do balcão, Uncle Pete chama Pete (interpretado com brilhantismo por Steve Buscemi) pela primeira vez de filho ao dar-lhe o conselho de nunca praticar sexo oral em uma mulher. Uma vez submisso, não haveria retorno possível. Mas a sua ideia de amor não é a de submissão (embora ele confesse gostar de ser chupado), tampouco a do amor como troca, como quando Pete descreve o sexo oral mútuo. Trata-se de algo como uma igualdade, sustentada pelos braços firmes do homem: olhando nos olhos um do outro, beijando o corpo inteiro do outro com seu corpo inteiro, gozando depois que ela goza. Há nesta descrição uma beleza absolutamente intocável para o Pete jovem e os outros homens de sua geração. Os atores são quase todos de primeiríssimo nível. Louis C.K. por incrível que pareça, tem entre todos um dos desempenhos mais medíocres. De certa forma, isso é bom para a série: o interessante é que os outros falem. O papel de Horace é o de espectador do próprio atordoamento e hesitação.

* Esta análise foi baseada nos cinco primeiros episódios da série.