Este trabalho[1]
buscará ler o ensaio “O direito à literatura”[2] de
Antonio Candido, publicado em 1988, a partir do comentário crítico feito a ele
no ensaio “Além da literatura” [3] de
Marcos Natali, publicado em 2006. A fim de tornar claros os argumentos de ambos
os ensaios, e os pressupostos que o ensaio de Natali busca criticar no ensaio
de Candido, faremos uma breve exposição dos argumentos principais de cada um,
seguida de uma apreciação crítica da crítica: uma tentativa de mostrar as
congruências e incongruências de Candido a partir de Natali e de possíveis
limitações da compreensão de Natali ao potencial do ensaio de Candido. Esta
difícil tarefa será exercida em busca não apenas de um conceito de literatura
que abranja a variedade e a diferença de origem e contexto da produção
contemporânea, mas também os fundamentos para sua crítica.
“O
direito à literatura”
O ensaio de Antonio
Candido foi publicado pela primeira vez no contexto de um ciclo de palestras
organizado pela Comissão Justiça e Paz de São Paulo, organização de origem
católica dedicada à promoção de direitos humanos e combatente da Ditadura
Militar, realizado entre outubro e novembro de 1989 na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo[4]. A
partir das palestras surgiram dois volumes intitulados Direitos Humanos e… nos quais se insere o ensaio de Candido
publicado então sob o título de “Direitos Humanos e Literatura”.
Antonio Candido desempenhou
importante papel intelectual e político na Comissão Justiça e Paz de São Paulo.
Dom Paulo Evaristo Arns, fundador da Comissão e uma de suas lideranças mais
importantes, define da seguinte maneira sua participação na Comissão: “Teve
destacada atuação, com suas ideias, atitudes e seus escritos, a favor dos
frutos do Concílio Vaticano II, por uma Igreja mais cristã e coerente e contra
a ditadura militar. Diante das ditaduras, o militantes professor fez-se ouvir
em todos os espaços, especialmente a partir do mundo universitário, na defesa
de professores e alunos, mas igualmente do mundo cultural brasileiro, enfim, da
sociedade brasileira em geral”[5]. É
no contexto, portanto, de redemocratização do país, pós-perseguições, combates
e abusos da ditadura, que se inserem as ideias do ensaio. Não apenas como
reflexão abstrata, motivada por questões internas à literatura, portanto, mas também
como proposta concreta de redemocratização e civilização – termo polêmico, bastante
utilizado por Candido – naquele momento específico do Brasil.
O ensaio se inicia
analisando a situação dos direitos humanos no mundo de então. Nota que pela
primeira vez a humanidade tem tecnologia para resolver seus problemas
fundamentais, como fome, mas não o faz por uma "insensibilidade" que
vai contra os ideais do Iluminismo e de seu herdeiro, o Socialismo. Aponta, no
entanto, com esperança para o fato de que a barbárie, apesar de existente no seio
da civilização, não é mais celebrada como antes. Haveria uma mudança de
discurso que impediria ou, ao menos, vexaria a enunciação do "mal"
(entendido aqui em sentido amplo como massacre, preconceito, dominação de
classe, etc.), embora ainda não a sua prática.
Em seguida, Candido busca
caracterizar o que chama de pressuposto dos direitos humanos: que aquilo que é
indispensável para mim também seja para o outro, e isto não “apenas” em relação
a certos bens materiais de subsistência, mas também em outras necessidades como
a fruição de Dostoievsky e Beethoven. Ele estabelece então uma distinção entre “bens
incompressíveis”, aqueles fundamentais não só à sobrevivência física, mas
também à integridade espiritual, estando na mesma categoria, portanto, tanto
alimentação e moradia quanto arte, lazer e literatura, e “bens compressíveis”
como “os cosméticos, os enfeites, as roupas supérfluas”. A partir desta
caracterização, o ensaio parte para o questionamento da própria afirmação
anterior, a saber, se literatura realmente é uma necessidade do primeiro tipo.
Um dos pressupostos
mais fundamentais do artigo surge na terceira parte onde o conceito de
literatura é expandido não apenas para além do campo da disciplina
universitária, mas para além da tradição escrita europeia. Candido toma neste
ensaio por literatura “todas as criações de toque poético, ficcional ou
dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura,
desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e
difíceis da produção escrita das grandes civilizações”. Há, portanto, um alargamento
do conceito mas acompanhado de hierarquização entre formas mais simples,
ligadas ao folclore, até formas mais complexas ligadas às grandes civilizações.
(O vocabulário, como o leitor contemporâneo rapidamente nota, soa mal aos ouvidos,
apesar (e talvez por causa) da intenção igualitária ou igualadora). A
literatura definida como “fabulação” é, neste sentido, universal, já que não há
indivíduo ou povo que não fabule. São listados gêneros tão diversos quanto o
devaneio, a canção, a propaganda e a novela como exemplos de fabulação e, portanto,
no sentido desenvolvido no ensaio, literatura. Como depositária dos valores das
sociedades, a literatura é vista tanto como instrumento poderoso de formação de
consciências como ferramenta de negação do “estado de coisas predominante”, em
um movimento, portanto, naturalmente dialético e, assim, ao apresentar os
pontos extremos da realidade, humanizadora.
A quarta parte do
ensaio é dedicada a justificar esta afirmação de que a literatura humaniza. O
argumento principal afirma que a literatura, ao organizar formalmente a partir
do nada um conteúdo, ajudaria o receptor a organizar seu próprio caos interior.
Em resumo, “o caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o
produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior
também se ordena e a mensagem pode atuar”. Há, portanto, um papel humanizador[6] a priori na literatura. Pelo negativo,
pode-se entender também que o humano é aquele que ordena seu caos interior
através da literatura que “pressupõe e sugere” uma “coerência mental”. Os
exemplos vem através de um provérbio popular e de um trecho de poesia de
Gonzaga, mas, segundo o autor, estão presentes em toda literatura, através da
já explicada “ordem redentora da confusão”.
Na quinta parte,
Candido se debruça sobre outro efeito da literatura: sua capacidade de divulgar
ideias e sentimentos. Esta capacidade, no entanto, estaria subordinada à
elaboração estética dos conteúdos. Não basta falar de escravidão, por exemplo,
mas é necessário, ao falar, satisfazer alguns requisitos que assegurariam a
“eficiência real do texto”. Quanto mais esteticamente eficaz, tanto mais humanizadora
a literatura. Todas as formas contribuem, portanto, mas umas mais do que
outras. Em seguida, o ensaio se dedica a um balanço histórico da literatura
escrita com engajamento social, tanto na Europa quanto no Brasil. A denúncia de
condições de vida indignas e desumanas seriam também uma contribuição da
literatura para a história dos direitos humanos.
A sexta parte do texto
é dedicada às condições sociais de fruição de literatura no Brasil. Retomando a
ideia de que a ausência de literatura é prejudicial à humanidade do sujeito,
Candido hierarquiza entre as modalidades e afirma que as formas de literatura
de massa, folclore, canção, etc. “são importantes e nobres, mas é grave
considerá-las como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e à
ignorância, é impedida de chegar às obras eruditas”. Assim, o ensaio passa a
analisar a situação brasileira de então em que a brutal desigualdade social faz
com que a literatura erudita seja privilégio de pequenos grupos. Há neste ponto
do texto quase uma identidade entre literatura e literatura erudita. Pois já
que a maior parte da população está afastada dela e ela é considerada como a
forma mais bem acabada e superior, surge como tarefa criar uma sociedade mais
igual em que a literatura erudita esteja disponível a todos. Exemplar, segundo
o texto, foi a iniciativa de Mário de Andrade como chefe do Departamento de
Cultura da Cidade de São Paulo quando a cultura foi organizada visando o
público mais amplo possível através da criação de “parques infantis nas zonas
populares; bibliotecas ambulantes, em furgões que estacionavam nos diversos
bairros; a discoteca pública; os concertos de ampla difusão, baseados na
novidade de conjuntos organizados aqui, como quarteto de cordas, trio instrumental,
orquestra sinfônica, corais”. Mario de Andrade também teria se dedicado à
pesquisa folclórica, valorizando as culturas populares no pressuposto, segundo
o ensaio, “de que todos os níveis são dignos” e que haveria uma dinâmica de
troca constantes entre os níveis. Segundo Candido, sociedades mais igualitárias
permitiriam ao indivíduo passar “dos níveis populares para os níveis eruditos
como consequência normal da transformação de estrutura” enquanto que em
sociedades desiguais, como a nossa, o abismo entre os dois níveis tenderia a ser
maior.
A partir de exemplos
históricos específicos, Candido argumenta que a ausência de literatura erudita
nas classes baixas não se deve a uma questão de capacidade, mas de
oportunidades, e que as boas obras de literatura “têm alcance universal”, como
no caso exemplar dos grandes clássicos e, especificamente, da Divina Comedia, que seria conhecida de todas
as classes na Itália. A segregação social brasileira faz com que aqui, ao
contrário do que acontece em sociedades mais igualitárias, reste ao povo apenas
a cultura chamada popular, enquanto as classes altas monopolizam, muitas vezes
sem interesse real pelo objeto, os bens espirituais mais preciosos. O ensaio é
concluído com um chamado à democratização dos diferentes níveis de cultura.
“Além
da literatura”
Marcos Natali é
professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. A
crítica ao ensaio de Candido, portanto, vem de dentro do mesmo departamento que
ele ajudou a fundar, o que é excelente sinal de continuidade no pensamento, a
partir, inclusive, de debate e discordância. Foi o próprio Antonio Candido quem
disse, por ocasião de uma celebração dos 40 anos da Formação da Literatura Brasileira, que uma obra deveria durar vinte ou trinta anos se tanto, “tempo
mais do que suficiente para que outra obra surgisse para ocupar o seu lugar,
superando-a, corrigindo seus rumos, acrescentando detalhes novos, angulações
desconhecidas, fazendo, em suma, avançar uma discussão que, na melhor das
hipóteses, só se esboçara quando de sua publicação”[7]. É
oportuno, portanto, o surgimento do texto de Natali quase vinte anos depois do
texto a ser analisado.
“Além da literatura” se
inicia retomando o conceito de Weltliteratur
de Goethe. Para o poeta alemão, a poesia é universal, surge nas mais
diversas civilizações, e, sendo assim, é patrimônio de toda a humanidade. A ideia
de literatura universal tem por pressuposto uma universalidade da própria
humanidade. O conceito, por sua vez, apenas indica o fato que já existente: em
todo lugar se produz literatura. O projeto de Goethe seria, portanto, o
reconhecimento desta identidade entre diferentes literaturas. Natali ressalta a
permanência desta ideia de universalidade da literatura na crítica moderna e
chega assim ao ensaio de Candido em que ele, segundo Natali, retoma a
literatura universal, dos diversos povos e classes, assim como exige politicamente
o acesso a estas literaturas em gesto “inclusivo e democratizante”.
Em seguida, a concepção
“universalista” da literatura é questionada como aparentemente a-histórica.
Haveria uma ambivalência entre duas formas opostas de se pensar a cultura: por
um lado, a cultura é uma força positiva, parte de um imperativo pedagógico que
transforma as pessoas em “cidadãos modernos”; por outro, o valor da diversidade
cultural é reconhecido e respeitado, em função de uma “missão educacional da
esquerda”. Para Natali, há uma tensão entre o reconhecimento da universalidade
da cultura e a exigência de que um tipo específico de cultura seja levado aos
outros. Uma tensão, portanto, entre um universal que é exigido e um específico
que é oferecido como se fosse o universal. Esta tensão seria típica do debate
contemporâneo acerca dos direitos à cultura: não apenas usufruir de uma, mas
também produzir a sua.
O ensaio segue
questionando o esforço democratizante da noção inclusiva e universalista de
literatura, pois, para ter efeito, seria necessário suprimir a especificidade
histórica e conceitual das diversas manifestações reunidas sob a noção de
literatura. Esta noção ampla se definiria como “manifestações ficcionais” ou
“fabulação” autônomas em relação à realidade e em oposição, por exemplo, ao
registro historiográfico. Para haver a noção de literatura é necessário haver
seu oposto, a de um real que não é mediado pela imaginação. Esta separação
entre fato e não fato, “da história e do resto”, segundo Natali, é típica do pensamento
moderno e permitiu categorizações deturpadas de formas discursivas com
pressupostos genealógicos e epistêmicos completamente diferentes. Em outras
palavras, a separação entre narração ficcional e narração histórica pertence a
uma tradição específica (a moderna europeia, poderíamos dizer) e não deveria
ser aplicada livremente em sociedades com pressupostos outros que não o do
binarismo “real-fictício”. Neste sentido, seria um equívoco e uma supressão da
especificidade tomar um canto indígena – que para o povo pode ter função
invocatória, profética, medicinal, etc. – por um poema árcade. Seria reduzir o
primeiro ao segundo, em prol da universalidade que, neste caso, não seria nada
mais do que a extensão dos pressupostos de produção do segundo no primeiro. Os
conceitos de “literatura universal” e “literatura comparada” seriam, segundo
Natali, máquinas de tradução: do específico (não-moderno-europeu) ao universal
(moderno-europeu).
O ensaio segue
mostrando como o esforço universalizador camufla pressupostos modernos,
especialmente no que se refere à noção de humanização entendida como processo
de ordenação interna. Lê-se: “é por causa da centralidade concedida à razão na
experiência literária que a literatura poderá então ser definida como uma
prática discursiva com uma função ordenadora”. O artigo também questiona a
capacidade de humanização da literatura que tem como pressuposto moderno a ideia
de que a comunicação se dá entre dois humanos, o que, em outros gêneros e
culturas, não é necessário, como no caso da produção de humanos para não
humanos (de pessoas para divindades, etc.) e de não-humanos para humanos
(entidades que transcrevem para humanos, etc.). Talvez fosse possível, então,
resumir a crítica principal de Natali da seguinte forma: a incorporação
generosa das diversas manifestações no amplo conceito de literatura seria uma
“incorporação do não-moderno pelo arcabouço conceitual da modernidade”, ou
seja, a tradução do específico em um pseudo-universal moderno, sendo este
moderno definido por Natali como mundo “desencantado” e “dentro dos limites da
racionalidade instrumental”. O ensaio dá como exemplo deste procedimento a
reivindicação por críticos latino-americanos como Antonio Candido e Ángel Rama
de que a inscrição de práticas discursivas locais na literatura seria um
processo de transculturação literária, quando na verdade estes críticos esqueceriam
de considerar que esta transculturação é dada, na verdade, no seio da estética
moderna europeia, no caso, o romance, com todos seus pressupostos
epistemológicos que não dão conta da especificidade da cosmovisão local. A
incorporação supostamente universalista feita pela literatura, segundo Natali,
ocorre do ponto de vista da literatura, mas não da cultura local específica.
Na última parte do
ensaio, voltamos à noção goethiana de Weltliteratur
em comparação com um trecho do Manifesto
do Partido Comunista de Marx e Engels. O ensaio afirma que a circulação de
mercadorias através da moeda permite uma universalização de coisas diferentes,
num mesmo sentido em que as diversas manifestações literárias seriam igualadas
sob o conceito de literatura universal. Mas, assim como o corpo do operário
possui uma diferença irredutível (a experiência sensível única do trabalho de
produção, em oposição ao produto igualado no valor de troca e na moeda), também
nenhuma literatura poderia ser completamente universal sem passar por um
processo de “violência tradutora”, em que perderia suas especificidades e
pressupostos de enunciação. No contexto da modernidade, no entanto, esta
violência é parte constante do trabalho do crítico que compara literaturas e,
sendo assim, este deve estar atento para as ruínas geradas por esse processo de
tradução.
A partir desta
indicação positiva no final, o ensaio segue questionando a possibilidade de uma
outra universalidade, aquela da sociedade emancipada em que não haveria mais
divisão de trabalho e, portanto, não haveria artistas especializados. Este
ideal pós-artístico leva ao questionamento: até o momento atual, e o ensaio de
Candido é prova disso, a literatura tem sido vista como ferramenta de justiça
social. Natali mostrou em seu ensaio, no entanto, que esta literatura não é tão
universal quanto se pretende e, portanto, tem também interesses (talvez se
pudesse dizer, que ela também tem raça, classe, nacionalidade e gênero) que, no
caso de uma transformação radical da sociedade, entrariam em choque com aquele
ideal pós-artístico da sociedade emancipada. O ensaio se encerra questionando o
caráter por si só humanizador e portanto progressista da literatura e, a partir
do que expôs, traçando a possibilidade de que a expansão da literatura,
atendendo a interesses específicos, poderia, na verdade, estar contra a ideia
de justiça.
Considerações
O ponto central a
partir do qual surge o ensaio de Candido e em torno do qual o ensaio de Natali
constrói sua crítica é a ampliação ou universalização do conceito de
literatura. Candido praticamente iguala fabulação e criação literária. Com isto,
ele iguala democraticamente as diversas culturas como que dizendo: sendo
humanas, todas produzem e consumem literatura. Há um conceito radical de
igualdade aplicado nesta universalização. Ele não deixa, no entanto, de
analisar estas diversas produções e de valorizá-las de acordo com seu critério
formal. As obras que veicularem mais apropriadamente através de sua forma
interna os conteúdos são as melhores e, por consequência, as mais humanizadoras,
porque proveem o receptor com novas formas, com as quais ele poderá se comunicar
e organizar seu próprio mundo interior. Há, portanto, uma capacidade comum e
geral de criação “literária” na humanidade, mas que atinge diferentes níveis
sendo a literatura erudita – de língua escrita e matriz europeia, vale
ressaltar – seu ponto mais alto. A crítica de Natali à universalização, por sua
vez, mostra que ao chamar tudo de literatura, a especificidade de cada
manifestação é perdida e destruída ao encaixá-la em critérios epistemológicos e
cosmológicos diversos do ambiente social no qual ela foi produzida. Chamar toda
ficção de literatura é aplicar uma regra criada no contexto bastante específico
da Europa moderna – aquela do discurso científico que distingue entre fatos e
não-fatos - a culturas e manifestações que não trabalham com as grandes
dicotomias ocidentais como sujeito e objeto, história e ficção, natureza e
cultura. A própria ideia de literatura como algo separado de um contexto
cultural mais amplo, como obra de arte autônoma das outras atividades humanas,
é algo extremamente recente e de maneira alguma universal, nem mesmo em seu
contexto geográfico originário.
As duas proposições, no
entanto, parecem não ser necessariamente contraditórias. Pois, parece, quando
Candido expande seu conceito de literatura, ele não passa a ser tão pautado
pela questão da ficcionalidade, como faz parecer o ensaio de Natali, mas de uma
característica estruturante, típico daquilo que ele quer chamar de literatura,
se assim pudermos dizer. A literatura no sentido candidiano é uma forma de
ordenamento da realidade que, muitas vezes, tem “força indiscriminada e
poderosa”. Não se está longe aqui do grande Outro do real ou de um trauma, que
precisa ser elaborado e organizado. O mundo como caos que a forma linguística
ou simbólica, metonimizada por Candido como literária, organiza. É verdade que
diversas áreas do conhecimento, como por exemplo a antropologia estrutural, chamaram
isto por termos talvez mais ajustados, como mito, e estudaram com mais profundidade
sua construção e função específicas. Mas Candido não nega que está saindo do
campo estritamente literário. Ele se refere em pelo menos três passagens ao
mundo dos sonhos e mesmo ao mito que ele substitui pelo nome de literatura ao
lembrar Otto Ranke. Assim, sua utilização de termos como “ficcional”, “poético”
e “dramático” deve ser entendida num sentido amplo e propositadamente vago. Pouco
importa se uma prece ou cântico é tido como narrativa histórica, fictícia ou
performativa: o que importa na argumentação de Candido é sua capacidade de organizar,
através de palavras, conceitos e imagens linguísticas, algo que até então
encontrava-se amorfo, tanto em quem fala, quanto em quem ouve. Ele afirma: “O caos
originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma,
se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode
atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um
arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido”. Caos e ordem
também são termos genéricos a serem entendidos no sentido mais amplo possível (ainda
que, no nível pessoal, profundamente reconhecíveis), já que cada experiência
tem uma angústia e um alívio específico e único. A canção que toca no rádio e
me faz chorar é tão literatura quanto a história indígena que o pajé canta para
a mulher em trabalho de parto, sobre os pequenos homens que entram e saem de
sua barriga, como conta Lévi-Strauss[8], a
fim de amortecer sua dor. Não são literatura por serem ficcionais, ou por serem
narradas por humanos para humanos, ou por nenhum outro par binário do ocidente
moderno, mas por atuarem na própria estrutura linguística a partir da qual todo
ser humano, salvo engano, organiza sua vida e a narrativa desta vida na Terra.
A literatura é a forma organizada da palavra que tenta dar conta do mundo que é
sempre outro, maior e inenarrável.
Nisto, sem dúvida, ela
é por si só “humanizadora”, ou seja, ela permite a mediação deste grande fora
para este dentro que é “nossa” – considerando-nos como humanos - condição.
Quanto menos acesso às obras das tradições e às formulações complexas que
permitam ao sujeito minimamente dar conta de sua condição no mundo, menos organizado,
autônomo e livre estará este sujeito. E falamos aqui de liberdade não no
sentido político, de uma autodeterminação do sujeito em relação ao seu contexto
social, mas num sentido existencial: a tentativa constante de superar o abismo
e a anomia que cercam cada existência humana. A mudez do mundo real – aquele
que é inacessível, mas se faz sentir – é o desumano, a literatura é a voz
coletiva que busca afastar o silencio perturbador. Não ficam de fora desta
descrição quaisquer povos não-modernos, pelo contrário. É possível que no seio
de comunidades indígenas com pouco contado com os modernos, por exemplo, a
existência seja muito mais organizada pela literatura, neste sentido amplo, do
que a vida do trabalhador na cidade moderna, recortada por narrativas que tem
como função principal gerar desejos e não organizá-los. Toda a história do
conceito de alienação, de Hegel a Zizek, aponta para este desajuste entre local
de discurso e sentimento de comunidade, mal-estar na civilização. Para colocar
em prova esta noção ampliada de literatura como palavra estruturada que
organiza o caos da existência, poderíamos compará-la com as teorias do Multinaturalismo
e do Perspectivismo do antropólogo Viveiros de Castro[9]
que buscam justamente recriar ou apontar as condições epistemológicas e
cosmológicas de civilizações não-modernas. Aqui, quando as narrativas ensinam
que a onça coloca-se no lugar de humano e nos vê como porcos, ou vice-versa,
trata-se da palavra estruturada que busca organizar nossa existência e a da
onça. A onça que para si mesma é humana também seria capaz, portanto, de
literatura.
Chegamos, então, não
por acaso, à antropologia e isto nos leva a um problema de critério e de
crítica literária. O texto de Natali nos deixa alerta quanto à aplicação de
critérios específicos sob a camuflagem dos universais. Neste sentido, a
ampliação que Candido efetua no conceito de literatura parece não se refletir no
seu conceito de crítica. Pois se é na organização formal que se define a
literatura, como dizer, tão rapidamente, que a literatura erudita – fenômeno
restrito e específico – é a mais elevada? Quais critérios formais levam a esta
posição? A crítica candidiana, que leva sempre em consideração a tradição
específica na qual a obra está inserida – como fica claro na Formação, por exemplo – esquece de considerar
que cada uma destas formas e gêneros que entraram no ampliado conceito de
literatura carregam consigo também tradições e expectativas formais que têm de
ser levadas em consideração no momento da crítica. Assim como só é possível
entender a grandeza da inovação do verso livre na poesia brasileira moderna
após o estudo do Romantismo e do Parnasianismo, por exemplo, não será também
necessário conhecer a tradição de cantos indígenas de determinado grupo, e seu
contexto histórico, para fazer a crítica do seu êxito formal? E como, em seguida,
comparar objetos com tradições, finalidades e pressupostos distintos? O único
critério possível seria aquele proposto por ele mesmo: sua capacidade de ordenação
do caos, que é a própria experiência humana no mundo, a partir de estruturas linguísticas.
(Mas será que grandes obras da tradição europeia, especialmente às do
Modernismo, não ficariam de fora desta “finalidade” imputada à literatura?) A
função do crítico deve, portanto, partir de uma atitude semelhante à do
antropólogo. Só assim será possível compreender os pressupostos da existência
humana, seus dilemas e suas possibilidades narrativas. É a partir do desafio
específico proposto por cada posição de onde fala o produtor que se deve
avaliar o sucesso de sua obra. Não medir a composição do hino com a do soneto,
nem isolar o hino dentro de sua tradição específica. A tarefa da literatura
comparada é perceber semelhanças, estabelecer constelações entre problemas,
respostas e suas respectivas capacidades ordenativas, através de tradições e
gêneros distintos. Ao que busca o hino e ao que o soneto. Se a questões
semelhantes, qual, considerando as diferenças técnicas, tem mais sucesso na
elaboração formal das perguntas e respostas? O fiador da universalidade e da
possibilidade de comparação é a própria linguagem humana, em suas
características comuns mais básicas, contanto que tomada em sua riquíssima
variedade.
Um ponto fundamental,
pelo qual passa o ensaio de Natali é o da produção de literatura. O ensaio de
Candido foca em sua fruição, mas esquece que também não existem meios adequados
de produção de literatura. Caberia às camadas baixas consumir a literatura
produzida pelas classes ou grupos (como o do homens, para lembrar o ensaio revelador
de Virginia Woolf, “Um teto todo seu”) que detêm os meios, inclusive, de
produção literária. O conceito ampliado de literatura deste ensaio exigiria sem
dúvida uma preocupação com uma produção que levasse em conta as condições
específicas de vida destas camadas da população brasileira e que tentasse dar
soluções formais a ela. Se é verdade que Flaubert em sua universalidade pode
falar muito aos jovens paulistanos de periferia, também é verdade que alguns
RAPs do Racionais MC’s podem organizar formalmente conteúdos com tanto sucesso
ou mais, para estes jovens e também para o público europeu. Só faz sentido
pensar em um contexto amplo de literatura se aumentarmos a polifonia e
atentarmos para os diferentes pressupostos de cada gênero e local de onde se
fala.
Da maneira com que
entendemos o conceito ampliado de literatura, não será uma questão, em uma
possível sociedade emancipada, sua supressão, como apontou Natali, já que ela é
parte fundamental do próprio aparelho cognitivo e da narrativa pessoal que
estrutura os sujeitos. O que deveria acontecer é, na verdade, um aumento das
capacidades narrativas e um acúmulo de técnicas, gêneros, formas de estruturar
a linguagem e a experiência da humanidade – supondo que este conceito, então,
ainda signifique algo. Neste processo de acumulação, depuração e miscigenação
de tradições, a crítica literária terá papel primordial. Vale lembrar que na Ideologia Alemã de Marx também encontra-se
uma descrição do cotidiano da pessoa emancipada e nela há espaço privilegiado
para a atividade crítica:
“Na sociedade
comunista, porém, onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe
aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva é a sociedade
que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã
outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear a noite, fazer crítica depois
da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar
exclusivamente caçador, pescador ou crítico"[10].
[1] Trabalho de conclusão para uma
disciplina da Pós-graduação em Teoria Literária escrito em 2014.
[2] CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários
escritos. São Paulo: Rio de Janeiro: Duas. Cidades, Ouro Sobre Azul, 2004, p. 169.
[3] NATALI, Marcos Piason. “Além da
literatura”. In: Literatura e Sociedade,
n. 9. São Paulo: DTLLC-USP, 2006, p. 30.
[4] FESTER, Antonio Carlos Ribeiro. Justiça e paz: memórias da Comissão de São
Paulo. Edições Loyola, 2005, p. 229.
[5] ARNS, Dom Paulo Evaristo.
"Um intelectual". In: AGUIAR, Flávio (org.). Antonio Candido - pensamento e militância. São Paulo, Editora
Fundação Perseu Abramo/Humanitas/FFLCH/USP, 1999, p.293.
[6] Antonio Candido define humanização
da seguinte maneira neste ensaio: “o processo que confirma no homem aqueles
traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.
[7] ALVES, Luis Alberto Nogueira.
“Sobre a Formação da Literatura
Brasileira”, in O
Eixo e a Roda. Revista de Literatura Brasileira. Volume 20, n. 1 . jan/jun 2011, p. 88.
Disponível online em:
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Eixo%20e%20a%20Roda%2020,%20n.1/06-Luis%20Alberto%20Alves.pdf,
às 11h50 23/06/2014.
[8] LÉVI-STRAUSS,
C. “A eficácia simbólica”.
In: Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac & Naifa, 2008,
p. 201-220.
[9] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo.
“Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In: A
inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo:
Cosac & Naifa, 2002, p. 345-399.
[10] MARX, K.; ENGELS, F. A
ideologia alemã. Trad. Conceição Jardim et al. Lisboa: Editorial
Presença, 1980. p.11-102.