terça-feira, 24 de novembro de 2015

Recife quente, Recife frio

A cirandeira Lia de Itamaracá, em Recife frio

Textos críticos escritos anteriormente não seguiam a proposta do blog de 3 parágrafos. Esta crítica do curta-metragem de Kleber Mendonça foi publicada originalmente no Negro Belchior.

“Socialite afirma que gente pobre está mais ‘chic’ passando frio”. Este comentário não vem de uma revista de moda ou fofoca, mas é uma manchete fictícia, escrita nos letreiros de um telejornal que compõe a trama do curta-metragem “Recife Frio” (2009), de Kleber Mendonça Filho. O curta inteiro é gravado como pseudo-documentário ou mockumentary, em tom ao mesmo tempo humorístico e sombrio, que trata sobre um estranho acontecimento meteorológico: a queda de um meteorito que causa o surgimento de nuvens permanentes sobre Recife, que baixam drasticamente a temperatura da cidade tropical. A partir deste pressuposto improvável, quase de ficção científica (a composição das imagens e o enredo prestam homenagem a Chris Marker e seus filmes La Jetée e Sans Soleil), Kleber Medonça faz uma ampla curva para pegar o espectador pelas costas: o falso documentário documenta com precisão questões sociais camufladas no cotidiano do Recife quente.
Sobre sua passagem do documentário para a ficção, o cineasta polonês Krzysztof Kieslowski teria afirmado que a segunda conseguiria captar o real de maneira ainda mais profunda que o primeiro. “Recife Frio” comprova esta tese. Toda uma parafernália de técnicas é utilizada para afastar o espectador do enredo, supostamente distante, mas trata-se, como dissemos, de uma distração: quando ele menos espera está diante do real até então despercebido. O pseudo-documentário se inicia ironicamente como uma reportagem especial para um jornal argentino. Sua narração, o estilo das entrevistas, as imagens turísticas utilizadas para mostrar o Recife antigo, quente e tropical, e a atual, fria, escura e chuvosa, tentam o tempo inteiro evidenciar o faz de conta. Aos poucos, elementos menos fantasiosos e distantes pontilham a narração. As imagens elogiosas das recifenses de biquíni e do estouro de uma água de coco são entremeadas pela referência ao cheiro de urina da cidade e do Capibaribe poluído, chamado de “caldo escuro”. Até aí, tudo bem, poderia ser apenas uma maldade dos documentaristas argentinos.
A medida que a narrativa prossegue, no entanto, os problemas ficcionais que surgem com a chegada do frio evidenciam problemas inequivocamente reais. Os moradores de rua incendeiam a noite com fogueiras, em busca de calor, mas morrem aos poucos de frio (o jornal fala de mais de 300 desde a mudança climática). A fragilidade da nova situação põe em risco os frágeis da velha situação. Neste sentido, apesar da paisagem e dos personagens locais, o Recife do curta é metonímia do Brasil inteiro (talvez por isso a necessidade de um narrador estrangeiro, não apenas de outro estado). A lente realista do falso documentário ajuda a operar uma inversão importante: mostra o quão ficcional é, na verdade, a concepção do Recife verdadeiro como tropical, quente, alegre. O Recife frio, por outro lado, apresenta através do frio atmosférico uma outro tipo de frieza, que aparece genericamente no curta caracterizada como frieza “humana” – típica dos grandes centros urbanos de nosso país.
A constatação desta frieza não se dá de maneira austera e documental, mas ao contrário, através do bom humor, e da ironia (sempre sublinhada na narração argentina), dos entrevistados. Cidadãos comuns, moradores de rua, repentistas, lojistas e instituições religiosas são mostrados em sua adaptação de improviso, mais ou menos dramático, às novas condições. Um dos pontos altos deste humor é o alívio justo de Clodoaldo Alves, o Papai Noel profissional que, depois de sofrer por anos com o calor da cidade, pode agora exercer sua profissão com menos desconforto – “Naquela época, 34 graus era pra matar, com aquela roupa”. Junto com o bom humor desta representação, vai também uma ridicularização velada de nossa apropriação tropical do Natal do inverno estadunidense, sintetizada em detalhe na imagem do Papai Noel que se refresca desesperadamente com a água de coco. Contar sobre os outros personagens irônicos e dramáticos, como o bretão melancólico, seria estragar um pouco o prazer de quem ainda não assistiu ao filme.
Podemos seguir, então, para a questão arquitetônica, que é tocada de modo certeiro pelo curta. Desde meados do século XIX até recentemente, foi recorrente em nossa país a tentativa de explicar e justificar nossa estrutura social a partir de condições geográficas e climáticas. O Recife capturado e resfriado pela lente de Kleber Mendonça desmascara estes esforços ao demonstrar que as relações de poder tem, na verdade, fundamentação econômica. Através da transformação climática, somos introduzidos também em uma mudança arquitetônica: a família de alta classe, que possui um apartamento amplo, com grandes janelas, à beira-mar, sofre agora com a desvalorização do imóvel, devido ao frio. Ao adentrar as entranhas do apartamento, abandonamos por um momento o tom humorístico (nós, os telespectadores, o narrador e a câmera seguem com curiosa leveza) e nos deparamos com o horror histórico brasileiro incrustado na estrutura dos apartamentos. A família, pai, mãe e filho, brancos, descrevem um “conflito familiar” em que o filho, que traja uma jaqueta com o emblema da bandeira alemã, deseja abrir mão de sua suíte para ficar com o quarto da empregada negra. O narrador distante, argentino, descreve este tipo de quarto com as seguintes palavras: “Essa instituição arquitetônica brasileira é herança da escravidão, fantasma moderno da senzala”. O menor quarto da casa, relegado aos fundos, praticamente sem janelas, tem agora o benefício de ser o mais quente e por isso é tomado pelo filho. A empregada doméstica quer seu quarto de volta. A mãe justifica seu incômodo dizendo que a empregada não está acostumada com uma suíte. A resposta da empregada desmascara: “O quarto de lá é mais frio”. O desejo do jovem patrão branco prevalece no quente e também no frio.
O salto ficcional do curta para dentro da arquitetura real de Recife quase não tem volta. Do quarto da empregada passamos para a feiura urbana e as preocupações com segurança. Somos brindados com uma sequência de imagens de grades, portas, prédios angulosos, asfaltos, condomínios que nos lançam do frio fictício e humorístico para o frio real e horroroso do real. Irremediavelmente misturados os dois Recifes, assistimos a cenas, sem saber exatamente onde se passam, de famílias que abandonam suas casas frias para se comprimir no espaço quente do shopping, de outros presos, os das cadeias, que organizam exposições de fotos sobre as novas nuvens: “Óia pra cima irmão”… Esta vertigem só é superada, enfim, por um canto poderoso e profético, no meio da praia cinza. 
O fim do curta-metragem guarda uma possibilidade de redenção: a voz e a luz dourada de Lia de Itamaracá, a negra que canta a ciranda, anunciam um esforço de atravessar as nuvens perpétuas que cobrem a cidade e a praia. O filme de Kleber Mendonça quer invocar este tímido raio de sol, usando a força crítica da ficção, num esforço para aquecer nossas cidades frias.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Cidade-dormitório


O termo cidade-dormitório se refere a municípios e bairros de grandes metrópoles onde a inexistência de uma esfera social autônoma exige que seus moradores saiam da cidade durante a maior parte do dia para buscar trabalho, educação e lazer em outros lugares (na maioria das vezes, a horas de distância de lá) e voltem apenas de noite e/ou nos fins de semana para suas casas. O próprio termo já designa uma diminuição brutal na ideia de cidade: de um aglomerado de habitações e instituições, mistas de espaço público e privado, em que a vida coletiva de uma sociedade se desenvolve em uma troca constante, a um aglomerado de habitações, com esporádicos comércios e reduzidos espaços públicos, ligados a uma rede de transporte que leva seus sonolentos habitantes para a vida coletiva em outro lugar. Se é verdade que a cidade é uma forma histórica de habitação ligada ao desenvolvimento econômico e sua concentração por grupos em regiões específicas, se é verdade que a forma cidade talvez seja um dos empecilhos principais para se pensar uma organização coletiva mais justa e ecológica, também é verdade que ela possibilitou uma troca entre pessoas e culturas em uma escala até então inédita, com resultados tão fantásticos e contraditórios quanto a produção cultural dos grandes impérios (Romano, Inca, Mali, etc) e os horizontes cobertos de barracões nas favelas em plena expansão do terceiro mundo no terceiro milênio. A cidade-dormitório é a redução destas possibilidades à mera habitação privada: cidade que não é aldeia, nem roda, nem ágora, mas apenas quarto de repouso do trabalhador. Ela poderia ser chamada também de cidade adormecida, aquela que dorme durante as noites quando seus cansados habitantes voltam das cidades vizinhas, aquela que dorme durante o dia quando é esvaziada pela quase ausência de seus habitantes.
O fluxo constante de pessoas para fora da cidade, seja para atividades de trabalho e estudo ou de lazer, faz com que não haja uma cena comercial ou cultural na própria cidade. Assim, seus trabalhadores e estudantes se relacionam com pessoas de outras cidades em outras cidades e quase nunca com pessoas da cidade-dormitório, nela. (Para os que ficam, a vida pública é reduzida à vida de bairro, se é que o bairro não tenha sido ainda transformado em condomínio ou em favela). O efeito produzido por este deslocamento é uma alienação tanto do espaço, quanto dos seus co-cidadãos. De forma compreensível, o sujeito que se dirige à metrópole ou ao centro, imagina que deixa para trás os outros cidadãos. Do esquecimento de que a maioria dos outros habitantes também sai, surge uma caraterística distintiva da personalidade do cidadão da cidade-dormitório: um tipo de arrogância contra seus patrícios. Se esquecendo que, por definição, quase todos saem, este cidadão adormecido - com a percepção alienada para seus arredores, ligada apenas no fora, no longe -  imagina que é o único que viu o mundo em pleno funcionamento, as possibilidades da metrópole, o mundo acelerado do trabalho e da cultura e sua troca incessante. No fim, uma cidade de pessoas que coletivamente se acham individualmente mais cosmopolitas e menos provincianas do que seus pares. Uma população, portanto, irônica: co-isolada, co-condescendente, co-arrogante. O efeito político previsível do transplante da vida pública local para outros lugares diversos é a prevalência da política privada, familiar, baseada em velhas oligarquias e seus parceiros de “negócios” sustentados pela frágil máquina pública. Como debater política com meus conterrâneos se frequentamos praças de cidades diferentes? 
A máquina colonial, em pleno funcionamento, opera um tipo específico de tráfico humano: o de potencial. O Brasil, por exemplo, exporta brasileiros talentosos para países do primeiro mundo. Lá, imagina-se, eles terão maior possibilidade de desenvolverem seus trabalhos. O país estrangeiro ganha, o brasileiro ganha - o Brasil perde. Esta fuga de potencial também caracteriza a cidade-dormitório. Sem espaço para desenvolver suas habilidades e o estilo de vida que mais lhe agrada, geração após geração abandona a cidade em busca de lugares que lhe convenham mais. O movimento se retro-alimenta, cada geração que abandona o lugar ajuda a manter o vácuo que expelirá também a geração futura. O caráter de cidade-dormitório permanece, assim, inalterado. Uma única geração que ficasse e ajudasse a construir na cidade uma manifestação específica, local, coletiva, a partir das demandas das pessoas que habitam ali e da experiência adquirida fora, em outros centros, poderia interromper este ciclo. Tornar cada periferia e cada cidade-dormitório em um centro vivo de si mesmo, em diálogo permanente com os outros, seria a tarefa desta geração. Não um retorno conservadorista, bairrista, mas uma abertura verdadeira, que só pode haver a partir de si, ao mesmo tempo, cosmopolita e local. Este seria um tipo de sonho para acordar as cidades adormecidas.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Vida Loka Parte II



Nenhum outro poeta no Brasil tem tantos versos decorados, na mente de jovens e velhos, quanto Mano Brown dos Racionais MC’s. Mas o RAP, embora seja ritmo e poesia, não é apenas poesia, nem quer sê-la. É também música somada a uma literatura oral, com origem no repente baiano e no Hip Hop estadunidense, que se comunica com uma sutileza e riqueza de referências de fazer inveja a muitas escolas estritamente literárias. Vida Loka Parte II, talvez a canção mais conhecida do grupo, é exemplar dos dispositivos técnicos utilizados por Brown para refletir esteticamente sobre as contradições do Brasil. O sétimo mandamento “não roubarás” é dramatizado em épica e lírica, sem moral da história ou conclusão, mas com aprendizado. Nenhuma política educacional de governo fez com que jovens periféricos refletissem com tanta profundidade sobre o dilema da criminalidade: vida longa, sob exploração brutal do Capitalismo que produz incessantemente desejos de consumo que não poderão ser realizados, ou vida breve, acelerada na super-dinâmica capitalista do crime, em que se arrisca o tempo de vida em troca da satisfação dos desejos (de poder e de consumo). Como sintetizado na fórmula brilhante de Brown: “Tempo pra pensar/ quer parar, que cê quer?/ Viver pouco como um rei/ ou muito como um Zé?”. Parte da aceitação do Racionais pelo seu público vem justamente da honestidade empática e da ausência de moralismo no tratamento de questões que são complexas como é complexa a realidade social brasileira. A mensagem não é “não faça”, mas: “se você fizer, tudo indica que isto ou aquilo vai acontecer como consequência, embora eu entenda o desejo de fazer”.
Vida Loka II é cantada sobre o trompete melancólico de um tema obscuro chamado, não por acaso, Theme From Kiss of Blood, encontrado por Brown em uma coletânea de trilhas sonoras de seriados policiais. Os primeiros versos justapõem imagens de consumo com imagens de miséria. A relação entre ambas ainda não é clara. A riqueza é associada com uma luta constante e com um lamento sobre sua necessidade ("Eu durmo pronto pra guerra/E eu não era assim"). O lamento reivindica um ideal, utópico e idílico, que se repete no rap, mas é impossível de se concretizar e sofre deboche por outro personagem, através da rima alucinante: “How, how Brown/ acorda sangue bom / aqui é Capão Redondo, tru / não é Pokemón”. A celebração do presente farto pelo eu-lírico (que neste momento é o próprio Mano Brown, cantor de sucesso de um grupo reconhecido nacionalmente) se ressente da luta que foi necessária e que obrigou o abandono do ideal: o tempo utópico é bloqueado pelo espaço distópico que é a Zona Sul. O rap segue com uma repetição variada da constatação inicial: a luta pela manutenção do poder de consumo é uma luta também contra os outros. A solução, então, não é fratricida: abandona-se a luta em prol de uma convivência conjunta. Desta convivência, ressurge o ideal, ainda que na Zona Sul. As condições da luta são declaradas em seguida: a criminalidade. Neste momento, a figura do lutador já não é mais Brown, mas um jovem encarcerado que arrependido do crime trocaria tudo para ter a convivência novamente com a mãe e o filho. Nesta revelação, o ideal ressurge com força através da invocação de um personagem bíblico: São Dimas, o bom ladrão, redimido por Jesus na cruz ("Aos 45 do segundo arrependido / salvo e perdoado / é Dimas o bandido"). O erro da aceitação da luta, na condição de crime, é absolvido a partir do arrependimento e a possibilidade inicial de ideal ressurge com força maior. Assim, não apenas o crime não é uma necessidade, mas quando cometido, não é o fim. Pelo contrário, é possibilidade de um ressurgimento. 
A exaltação religiosa que segue no fim do rap não traz, no entanto, um final feliz. A redenção é bloqueada no último verso em que se afirma que “em São Paulo, Deus é uma nota de cem”. Mais uma volta é dada na questão da luta: bloqueados os ideais, idílico e o religioso, para negros e pobres, a luta por consumo se mostra como uma luta por felicidade. Miséria traz tristeza e vice-versa, portanto vai-se à luta, na forma do crime, que leva a outro tipo de miséria (o encarceramento ou o assassinato), que, paradoxalmente, abre a possibilidade mística do ideal até então bloqueado, reconhecido, no entanto, também como impossível em São Paulo, cidade em que Deus também se converte em objeto a ser alcançado pela luta, tudo reduzido à imagem e semelhança do dinheiro, principalmente as pessoas. No meio dos produtos que seduzem na forma de imagem de felicidade, lamentavelmente, estão as mulheres, não como sujeitos igualmente despojadas, mas como mercadoria das mercadorias, mercadoria para usufruto da qual se exige a aquisição de todas as outras. Com uma lírica parabólica, costurada com personagens, ritmo sedutor e referências contemporâneas e clássicas, Brown apresenta em altíssimo nível a contraditoriedade de nosso quadro social, de seus agentes simultaneamente ativos e passivos, vítimas e algozes, com possibilidade bloqueadas e em seguida redimidas, em permanente e vertiginoso movimento. Como não nos reconhecermos na sensação insuperável de impotência, na crença inquebrável de que “é só questão de tempo o fim do sofrimento”?

(Vídeo lançado no ano de 2007 e produzido por Gabriel Braga para Paralelo Filmes, sob direção de Mano Brown e Kátia Lund)

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Rima e destino

(Cena do Édipo Rei, de Pasolini)

Estes três parágrafos cometem generalizações imperdoáveis sobre gêneros, formas, movimentos e estilos literários. Ignoraremos desavergonhadamente as variações no uso modernista da rima e os diversos momentos de sua recusa e retomada nas últimas décadas. O tema destes parágrafos é a diferença na relação entre rima e destino para pré-modernos e modernos. Quando um som surge num verso, ouvido ou imaginado, e momentos depois, após uma série de outros sons, se repete, talvez com uma pequena variação, talvez idêntico, uma sensação agradável toma o leitor-ouvinte. De onde vem o prazer que a rima causa quando acontece? Uma resposta possível seria que o prazer vem da sensação de segurança com o cumprimento de uma promessa. A intensidade deste prazer varia com a qualidade da rima, chamada de pobre ou rica em nossa tradição, que é também uma variação na qualidade da trama. Um final esperado causa mais prazer se quase parecer que não vai se concretizar, até fazê-lo. Como regra geral, a rima entre palavras que não são comumente relacionadas surpreende e agrada mais do que a velha relação entre amor e dor.
Se parte do prazer da rima consiste no cumprimento de uma promessa, então talvez ela possa ser comparada com a forma da profecia. O mito do Édipo tem início com a revelação oracular a Laio e Jocasta de que seu filho assassinará o pai e desposará a mãe, e tem fim com Édipo se descobrindo assassino do pai e esposo da mãe. O verso clássico tem uma forma semelhante: o primeiro surgimento do som no fim do verso é a profecia, sua repetição no fim do verso posterior é seu cumprimento. A poesia, de alguma forma, nos introduz no mundo em que reina não o tempo da causalidade, mas o do destino: concepção de história em que o acontecimento não depende do acontecido. Laio e Jocasta enviam seu filho para longe, Édipo foge de Corinto para que a profecia não se cumpra, sem sucesso. A variação infinita dos acontecimentos não produz variações paralelas no futuro - pelo contrário, quanto maior o afastamento do profetizado, maior é o triunfo da profecia em seu cumprimento - porque o futuro é único, pré-determinado. No verso clássico, portanto, o som no fim do verso profetiza e cumpre, mas no verso modernista, a profecia se cumpre sem ter sido profetizada, aparece como acontecimento. Ou, simplesmente, não acontece. A história como campo aberto, imprevisível, infinito. 
Se é assim, talvez se possa pensar que as mudanças no uso da rima no verso moderno, caracteristicamente livre, sem métrica fixa, são acompanhadas dialeticamente de mudanças na concepção de história. Rima no fim do verso, como no clássico, associada ao destino; sem rima, em uma concepção histórica causal, mecânica, baseada nas ações de um sujeito; e com a rima no meio, que é a que nos interessa. Nesta modalidade, a tensão do leitor se acirra, pois a qualquer momento a promessa pode ser cumprida. Mas qual promessa? Isto também não é mais evidente, já que o som pode surgir e se repetir a qualquer momento. Com isto não se deve compreender apenas que o verso modernista é mais esclarecido, em oposição ao que seria a expectativa mitológica de repetição do verso clássico, ou mais irracional, em oposição ao triunfo do sujeito autônomo no verso sem rima. O mais interessante talvez seja refletir sob a forma temporal para a qual este tipo de rima aponta: como cumprimento de uma promessa desconhecida. Do ponto de vista de uma filosofia da história, esta versão moderna é mais irracional (do ponto de vista do cálculo) - porque vive na espera de algo de bom que não se sabe o que é - mas menos determinista - porque sabe que o bom pode surgir em qualquer tempo e lugar. Algo de messiânico permanece, mas talvez em uma versão "gratuita", de graça, crença em uma redenção sem sua profecia: esperança.