segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A literatura fantástica de Ted Chiang



So when I look back on my career, it’s sort of like being a polka musician for a while and then seeing polka music become cool. (To polka fans who are offended at the suggestion that polka is uncool, I apologize.) When I first entered the field, I did so with the expectation that I could only ever reach a niche readership. Now it seems like there’s the potential to reach a more general audience”.


Ted Chiang é considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos de ficção científica. Sua obra é relativamente pequena dada sua importância: são aproximadamente quinze contos e pequenas novelas, publicados originalmente em revistas especializadas e alguns deles compilados no volume intitulado “Stories of Your Life and Others” (publicado recentemente no Brasil como Histórias da sua vida e outros contos”). Sua obra alcançou o grande público em 2016 quando o conto “Histórias da sua vida” foi adaptado em uma grande produção cinematográfica sob o título de Arrival (“A Chegada”), com recepção entusiasmada de crítica e público. Embora Chiang seja tomado como escritor de ficção científica, talvez fosse possível falar de literatura fantástica, num sentido mais amplo, já que suas histórias não tratam apenas de cenários futurísticos, mas também de contextos passados ou míticos, ainda que a tecnologia e suas relações sociais sempre desempenhem papel fundamental. Não se trata tanto de exercícios de especulação futurista, utópica ou distópica, mas de experimentação técnica nos mais diversos contextos. Convivem, ainda que em contextos diferentes, os golens da tradição medieval judaica e os ciborgues quase incompreensíveis para os humanos num futuro próximo, a Torre de Babel que se tenta (mais uma vez!) construir na Antiguidade e um mundo contemporâneo assombrado/abençoado pela aparição súbita de anjos. Aliens surgem no contemporâneo para dar aula de linguística e filosofia da história, mais ou menos ao mesmo tempo em que uma matemática se desespera com uma descoberta lógica terminal.
Se for possível, então, falar de literatura fantástica, talvez também se possa dividi-la em dois tipos. Um primeiro, dedicado à descrição de cenários declaradamente não realistas, constituídos por elementos imaginários não existentes no mundo dito real como lugares, linhas temporais alternativas, espécies, tecnologias, elementos místico-religiosos, etc. Trata-se de uma literatura mais autorreferencial, mais preocupada com a constituição de um mundo alternativo do que em relacionar seus elementos fantásticos como o mundo externo. Seu tom muitas vezes escapista, faz com que grande parte sua difusão se dê em nichos infantojuvenis, ainda que não exclusivamente. Exemplos populares deste tipo de ficção são os mundos de Tolkien, Rowling, etc. O segundo tipo, onde parece estar localizada a obra de Ted Chiang acompanhada de influências claras como Asimov, Borges e Kafka, usa seus elementos fantásticos como experimentos a serem conduzidos com o maior realismo possível. Ainda que os cenários estejam distantes do mundo do leitor, sua apresentação durante o texto não segue uma lógica autorreferencial independente, mas segue a lógica social mais reconhecível. Em “Hell is the absence of God”, a estranha aparição de anjos é tratada apenas secundariamente do ponto de vista místico. Importa mais a relação quase econômica entre as benesses e problemas produzidas por sua aparição, a forma com que socialmente se trata do dado que é a existência de Deus, do Céu, do Inferno, dos Anjos e de sua relação com o mundo social, para além disso, normal, de palestrantes, jornalistas, marceneiros, etc. A série Black Mirror trabalha de forma semelhante, produzindo experimentos sociais a partir de seus elementos tecnofantásticos, em oposição, por exemplo a séries de ficção científica como Star Trek ou Star Wars. Evidentemente, toda obra de ficção se refere, de alguma forma, à sociedade a partir da qual é produzida. A diferença entre os dois tipos de literatura fantástica talvez esteja na tentativa desesperada do primeiro em escapar a esta influência, construindo um mundo (falsamente) autônomo, enquanto o segundo utiliza seus elementos exógenos para penetrar fundo como uma agulha no mais inconsciente e encoberto ideologicamente da realidade. Eis o potencial crítico da literatura fantástica (e do boom recente de bons livros, filmes e séries de ficção científica): fingir apontar para longe, falando de algo que não toca imediatamente o leitor, para, de súbito, fazê-lo olhar para o mais íntimo, até então ignorado, de sua realidade. Num mundo cansado do noticiário e da denúncia social, a literatura fantástica parece conseguir driblar o bloqueio. Chiang Fala da produção mística de golens na Inglaterra pré-revolução industrial e clandestinamente acaba por discutir questões urgentes de biopolítica e do risco de desemprego generalizado pela automatização do trabalho.
Em “História da sua vida”, conto que dá título ao volume, a chegada de gigantescas naves alienígenas na Terra e a tentativa de estabelecer contato com elas não abre espaço para uma descrição exotizante do mundo alien e seu funcionamento distante (e seguro, para o leitor). A aparição é tratada como oportunidade de reflexão sobre as concepções temporais inscritas profundamente em nossas línguas e a possibilidade experimental, possibilitada por esta alteridade tecno-histórica, de compreender e expressar o tempo de outra maneira que a não a causal, homogênea e fracionada da contemporaneidade. O conto de Ted Chiang alcança grandes altitudes literárias não apenas por especular criativamente outras formas de compreender e contar o tempo, mas por se utilizar com maestria das próprias possibilidades formais da literatura. As possibilidades de compreensão temporais abertas pelo aprendizado da língua alienígena pela linguista narradora não são descritas de forma causal e corrida, mas estruturam a própria ordem narrativa. Ao invés de dizer o que a protagonista aprendeu, Chiang a utiliza como narradora mostrando ao leitor sua nova forma simultânea de organizar a experiência temporal. Não do começo para o fim, nem sua inversão, já batida em formas narrativas da indústria cultural, mas em uma totalidade conhecida desde o começo e compreendida (ou relembrada, talvez se pudesse dizer...), apenas no final, performando ao máximo possível na própria forma do texto. O embaralhamento dos tempos na narrativa não surge como gosto pelo pitoresco ou vanguardismo, mas como experimentalismo exigido pela própria dinâmica da narrativa. Trata-se, sem dúvida, de uma pequena obra prima do conto contemporâneo.