sábado, 28 de outubro de 2017

O fascinante “The Clock”, de Christian Marclay, está em São Paulo

Um filme com 24 horas de duração, que se repete. Uma réplica cinematográfica do dia. Cada minuto aparece marcado em um relógio em cena, às vezes sutil, às vezes central. Cada minuto é uma cena retirada de um outro filme. O tempo do filme está sincronizado com o horário oficial do lugar de exibição. 1440 minutos retirados de centenas de filmes montados em uma mega videoinstalação. Isso é The Clock (O relógio), obra do suíço-americano Christian Marclay. Leia mais na coluna de Tomaz Amorim
Por Tomaz Amorim Izabel*
Um filme com 24 horas de duração, que se repete. Uma réplica cinematográfica do dia. Cada minuto aparece marcado em um relógio em cena, às vezes sutil, às vezes central. Cada minuto é uma cena retirada de um outro filme. O tempo do filme está sincronizado com o horário oficial do lugar de exibição. 1440 minutos retirados de centenas de filmes montados em uma mega videoinstalação. Isso é The Clock (O relógio), obra do suíço-americano Christian Marclay, que venceu o Leão de Ouro na 54ª Bienal de Veneza em 2011, já foi exibido em museus e galerias de prestígio como o Tate, o Centre Pompidou e o MoMa e agora está em São Paulo.
Os fluxos do dia variam de acordo com a hora em que o espectador entra na sala. Os minutos matinais, passados clandestinamente na cama, são muito diferentes daqueles dos almoços aborrecidos e das festas noturnas. Assim como a numerologia preenchia cada número com uma micronarrativa, em The Clock cada momento é alegorizado pela obra, cada cena relembra ao espectador algo de parecido vivido em uma hora aproximada de algum dia, cada cena abre-se para a possibilidade de uma nova vivência. Mas a obsessão com o relógio também privilegia certos temas que se repetem: embarques em ônibus, aviões e trens (a ferrovia teve papel fundamental na marcação cada vez mais precisa e fragmentada do tempo), consultas e encontros com hora marcada, aulas começando e terminando, entrada e saída nos turnos das fábricas etc. São, não por acaso, cenas características da vida moderna, fruto da disciplina temporal das instituições regidas pelo seu principal aparelho de controle: o relógio.
The Clock encena a tensão entre o tempo objetivo do relógio e o tempo subjetivo da vida. O cinema é a arte que melhor pôde encenar esta tensão porque nasceu e se desenvolveu justamente no período em que o tempo da vida foi gradualmente sendo reduzido ao tempo do relógio. O tempo do relógio venceu, mas viu surgir como seu negativo, como forma de resistência, técnicas e gêneros de vanguarda que tentaram interromper a artificialidade do tempo como quantidade, como mera acumulação de fragmentos sempre iguais e concatenados. Contra isso, talvez, é que a literatura moderna se utilizou das parataxes e dos fluxos de consciência. Contra isso, talvez, é que o cinema de vanguarda levou ao extremo a técnica da montagem. Em poucas obras como The Clock esta técnica mostrou toda sua ambiguidade: a montagem explode o contínuo para em seguida reorganizá-lo em uma nova continuidade.
O crítico de cinema Peter Bradshaw descreveu  da seguinte maneira sua  experiência com a obra: “Para mim, o efeito mais estranho de The Clock é que as referências temporais se tornaram ficcionais. Eu parei de notar que elas estavam me dizendo exatamente que horas realmente eram. Elas se tornaram uma série de números que ordenava o mosaico de humores e momentos. E então, lentamente, mas com certeza, eu parei completamente de notar o tempo. Eu apenas me embebedei dele, apenas aceitei as justaposições”. É a montagem que estabelece uma continuidade entre partes diferentes, o filme é uma grande constelação. O crítico Liam Lacey também descreve sua experiência de vinte e quatro horas ininterruptas assistindo o filme: “E por que Matthew Broderick está espionando Tom Cruise? Não, a espionagem é um truque de edição que se tornará familiar aos poucos. Um personagem olha para fora da cena e nós cortamos para alguém em um outro filme. Ou alguém abre uma porta e nós estamos em outro filme”.
Os minutos são descaracterizados pela pluralidade fascinante dos filmes de que foram tirados. Cada um se torna um pequeno filme, autônomo, liberado do seu próprio contexto original. Por outro lado, sua relação de vizinhança reconstitui uma sequência nova em que o tempo vazio do relógio reencontra o tempo de vida representado nos filmes. Se Walter Benjamin exigiu que o historiador desse “fisionomia às datas”, Marclay parece dar fisionomia aos minutos. A matéria dá contorno ao espaço-tempo através de sua força gravitacional, como os recortes dos filmes moldam com diferentes intensidades a sequência ordenada dos minutos. Da sucessão estéril, numérica, a um tempo mais próximo da vida humana, tempo preenchido e diverso, sequencial, mas por vezes interrompido, lembrado (proustianamente, até), entrecruzado, adiantado por uma espera ou uma promessa. The Clock ordena e repete, mas com variações e diferenças intensas, sua montagem é fragmentada e contínua, como uma paisagem cheia de morros, declives, fauna e flora, e nesta tensão entre abstrato e sensível mostra-se a ambiguidade do tempo experienciado pelas pessoas na Modernidade. Muito se falou sobre a capacidade do cinema de explodir o tempo através da montagem. Poucas imagens representam com tanta potência a literalidade desta explosão quanto a da bomba-relógio, espalhada pelos minutos organizados por Marclay, até finalmente explodir à meia-noite, levando o Big Bang e suspendendo o Tempo Médio de Greenwich.
Informações: Em exibição até o dia 19 de Novembro no Instituto Moreira Salles de São Paulo, Av. Paulista, 2424. Horário de visitação: de terça a domingo e feriados (exceto segunda), das 11h às 20h. Entrada gratuita. Dica importante: The Clock tem algumas apresentações de 24 horas, sempre de sábado para domingo, permitindo ao público experimentar a obra na íntegra. Nessas ocasiões o centro cultural ficará aberto durante as madrugadas, pois a obra será projetada ininterruptamente, das 10h do sábado às 20h do domingo.
Foto: Reprodução de cena de “V de Vingança” (2006), de James McTeigue

Racionais MC’s: Raça e consumo em Cores & Valores

Trata-se de um álbum que tenta dar voz ao espírito contraditório de uma classe social recém-surgida no Brasil e já em perigo de extinção
Por Tomaz Amorim Izabel
“Cores & Valores” foi lançado em 2014, sendo o sexto de estúdio dos Racionais MC’s e o primeiro em 12 anos com faixas inéditas. A expectativa gigantesca do público e da crítica foi satisfeita. O álbum ganhou prêmios e a única reclamação generalizada foi sua curta duração, meia hora para uma espera de mais de uma década do grupo mais importante da história do RAP nacional. 2014 parece pouco tempo atrás, mas a situação político-econômica do país era muito diferente. A cena musical também. O Funk Ostentação seguia para seu terceiro ou quarto ano de triunfo nacional. Do nome ao estilo da música, “Cores & Valores” se encaixou como uma luva neste contexto estético-político. A amplitude das batidas, os efeitos de voz, a colagem documental de reportagens e samples (Cassiano e o Soul estadunidense, sempre presentes!), o swing e o ritmo dos versos, sotaques e timbres, tudo é alucinante como uma viagem narcótica, como um pico ascendente que culmina antes de descer novamente no meio do álbum, em uma repetição prazerosa, em um mantra pop: “Eu compro, eu compro, eu compro”. O rap que dá título ao álbum traz uma referência inesperada: sua batida é da canção Royals da cantora neozelandesa Lorde, que traz na letra uma contradição semelhante ao deste álbum do Racionais: as músicas falam de dinheiro (“But every song’s like gold teeth, Grey Goose, trippin’ in the bathroom”), mas nós nunca seremos parte daqueles que historicamente o têm (“And we’ll never be royals”). A canção de Lorde e o rap dos Racionais performam a mesma contradição: sendo parte de um modo de vida, expressam um desejo frustrado de alcançá-lo. Verdade que o Racionais nunca esquece de onde vem e para quem está falando: o consumo é a culminação da ascensão social de quem não podia consumir e agora pode, ou melhor, em 2014 ainda podia. Uma perspectiva histórica supostamente ausente no Funk Ostentação. Supostamente, porque como os rolezinhos mostraram no mesmo ano, o consumo não é tão universal como pretende o Capitalismo. (“Olha só aquele shopping, que da hora! / Uns moleques na frente pedindo esmola”). Mesmo no caso raro de ter como comprar, a corporeidade denuncia, a pobreza tem uma materialidade que inclui o corpo e a cultura, a aparência: “Mesmo podendo pagar, tenha certeza que vão desconfiar”.
A escolha do nome do álbum é precisa. O par Cores e Valores se multiplica em sentidos diversos e contraditórios. O mais imediato é no nível do consumo: as cores e valores do dinheiro (“notas verde azul piscina”, o laranja gritante, cor do boné de luxo e do uniforme do gari, é tema do álbum), o mundo fica mais colorido, cintilante, de acordo com os valores na conta. O sentido paralelo, contraditório e não contraditório com o primeiro, tensão que perpassa o álbum, está no nível ético: cores de raça, brancos e negros, e valores políticos: memória, procedimento, resistência. O álbum vai testando hipóteses sobre o par e seus níveis de sentido no Brasil: quem tem cor não tem valores financeiros, embora tenha valores éticos ligados à consciência da raça. Dito pelo avesso: quem não tem cor, os brancos, tem valores financeiros, embora não tenham valores éticos, por causa da opressão histórica. São Paulo simboliza bem a segunda formulação: capital branca do Capital sul-americano e “última a abolir a escravidão”. O álbum como que propõe então uma inversão histórica e ética: Valores para quem tem valores. A esquerda, branca e negra, tenta disfarçar o mal-estar ou a discordância com esta crença de que o dinheiro, por si só, possa corrigir esta versão da luta de classes em que raça e classe se igualam. “Guerra fria, muçulmanos e USA / Preto e branco como jogo de xadrez”. Mas o Racionais não se comove por este mal-estar, pelo nojo de dinheiro de uma certa esquerda pequeno burguesa. (Falar abertamente de valores sempre foi interditado, como deselegância, pelos valores tradicionais…). Nojo que é privilégio de quem o tem e pode viver, na convicção de uma inocência ou pureza, sem pensar muito nele. O Racionais e seu público querem dinheiro (“O vil metal só não quer quem morreu”), sim, e as razões se misturam: do desejo alucinante de consumo à reparação histórica (“Você me deve”), do desejo de conforto de quem trabalhou a vida inteira à segurança que o dinheiro pode oferecer para quem vive em cenários de guerra.
A celebração do consumo aparece, portanto, como celebração de uma emancipação da raça-classe. Consumo como emancipação, como projeto político, como palavra de ordem: “Fique rico ou morra tentando” e mais uma enumeração de grifes de fazer inveja a qualquer Funk Ostentação. Nesse sentido, Cores & Valores é a encarnação artística do projeto político do PT desde 2002. É o representante das contradições produzidas pelo projeto de inclusão social via consumo. Se em 2014 esse projeto já mostrava sinais de derrota, tanto ideológica nas urnas, como material com o início da perda de poder de consumo da classe C, em 2017 as contradições já explodiram. Como consumir, em contexto de crise, sem dinheiro? Sintomaticamente, o rap que vem logo em seguida de “Eu compro” é “A escolha que eu fiz”, que trata justo de um assalto malsucedido em que o eu-lírico reflete do chão, sangrando, prestes a morrer: “Com vinte anos apenas, nunca dei orgulho / Só acumulo problemas / (…) No chão por alguns reais”. Neste som, o fã reconhece o Racionais mais antigo, aquele que conta sem moralismos da sedução e do preço caro da vida de crime, como faria um irmão mais velho que entende, mas tem um conselho. Porque a vida no crime promete solucionar a crise existencial de quem vive na periferia do Capitalismo, aquele que é alimentado constantemente com desejos de consumo sem nunca poder realizá-los. A frustração é permanente nesta “prisão que eu mesmo construí”. As satisfações esporádicas e parciais do desejo pelo assalariado (nunca permanente, nunca do “melhor”) encontram no crime uma possibilidade. O Racionais reconhece isso e ao reconhecê-lo consegue penetrar na intimidade do jovem que está na defensiva contra o moralismo trabalhista-cristão da sociedade.

Um incômodo mais antigo, e infelizmente pouco ambivalente, também se repete neste álbum: a representação da mulher. Ela é mercadoria desejada, também a ser comprada, roubada de outro homem ou cortejada romanticamente. Mesmo na questão racial, sempre tão potente nas letras do Racionais, há pouca diferença. No máximo o interesse masculino fica reduzido às mulheres do seu grupo social-racial. Nas canções mais românticas houve uma inversão em relação a faixas mais antigas: a negra se torna companheira e a branca de alta classe fica relegada ao papel de diversão, objeto de ostentação (“Comer todas as burguesas em Fernando de Noronha” ainda dói nos ouvidos). A hipersexualização histórica da negra no Brasil, e sua solidão conjugal, encontra nesta inversão uma solução? Ou o machismo só se especializa? Do ponto de vista do consumo, tema central do álbum, o papel feminino continua a ser passivo, o de ser consumida como produtos das marcas de grife desejadas: “Swing e chocolate, preta Cadillac / Nem caro nem cost, nem Ferrari ou Lacoste”.
O Racionais cria épicos do crime com toda a viagem do desejo, mas sempre com o mesmo final pedagógico: a tragédia. A lição fica sendo uma tentativa de resistência ao desejo (não ceder à sua solução rápida ao custo da própria vida ou liberdade) ou, como é o caso de Cores & Valores, sua celebração. Mas a pergunta permanece: como consumir sem dinheiro e sem apelar para o crime? Se nem todo jovem pode ter uma vida bem-sucedida no RAP, o que fazer? O esboço de resposta que os versos mais fracos do álbum propõem parece autoajuda para empreendedores: “Financiar o seu sonho e acreditar em você / Seu limite cê que sabe, quer chegar aonde? / Ter helicóptero no iate, conquiste sua condição”. Não por acaso, é o tema do Rocky Balboa, herói da superação e da Sessão da Tarde, que embala o rap mais poderoso do álbum. Com flow impecável, ousado, atravessado de rimas improváveis, reveladoras, Brown está atento. Os versos finais mantêm a tensão e a contradição que estruturam o álbum, o nome do rap é uma questão: “Quanto vale o show?”. Do céu ao inferno, das canções ostentação do Funk e de Lorde à realidade paulistana: “A vitrine Pierre Cardin, Gucci, Fiorucci, Yves Saint Laurent, Indigo Blue / Corpo negro seminu encontrado no lixão em São Paulo”. O Indigo Blue e o corpo negro seminu rimam, este é o tema do álbum, este é seu incômodo.
Apesar disso, nas falhas e nos acertos, o aspecto mais importante deste álbum fica nas partes em que a contradição é mantida sem resolução fácil, como nas obras de arte mais interessantes que ajudam a nomear não o que já passou, mas o que ainda está para se decidir. Se é verdade que politicamente o Brasil ainda não saiu de 2013, esteticamente este álbum está na ordem do dia. Com a crise econômica e moral galopante acentuada pelo golpe, nunca a questão do consumo – e de sua perda – esteve tão visível no cotidiano. Trata-se de um álbum que tenta dar voz ao espírito contraditório de uma classe social recém-surgida no Brasil e já em perigo de extinção. Há décadas nenhuma outra voz da música brasileira falou sobre temas tabu, à esquerda e à direita, com a complexidade de quem as conhece e com a complexidade da expressão do grande artista. Conservação da grandeza da música negra brasileira e sua atualização última. O minimalismo do último álbum, uma mix tape ultra produzida, tão curto, é sinal de sabedoria, precisão que vem com a idade, sem fugir da raia. “Me degradar pra agradar vocês? Nunca”. Recado dado.
Foto: Boogie Naipe

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A defesa dos museus passa por sua democratização radical

Qualquer um que siga a movimentação política dos últimos quatro anos no Brasil entende que não há “debate sobre arte” em andamento, mas simplesmente uma troca de pautas. Sem PT no governo ou grande movimento social organizado para culpabilizar pelo péssimo estado político e econômico do país, grupos de extrema direita precisam inventar e requentar pautas para não desaparecerem do feed de notícias de seus leitores. Impossibilitados de criticar os governos no poder, porque são seus aliados, optaram recentemente por mudar a pauta do debate, da “política” para a “cultura”. As aspas em “política” e “cultura” se justificam porque estes grupos nunca debatem o tema em si, mas o usam de trampolim para atacar adversários e aumentar o número de seus seguidores. Se não fosse assim, o debate sério sobre “pedofilia”, por exemplo, estaria focado na casa familiar, lugar em que a maior parte dos abusos acontece, ou nas igrejas, ou nas beiras de estrada, ou nos hotéis de turismo sexual, e não em um espaço público, visível a todos e controlado por câmeras como são os museus que estão sendo atacados neste momento. Se estivessem interessados em debater cultura nos museus, eles participariam de seus conselhos, da luta por mais financiamento público para a diversidade cultural e dos esforços por sua democratização. Nem um, nem outro. Seus esforços se reduzem ao fechamento dos museus e aniquilação dos “adversários”.
Quando se coloca publicamente uma falsa polêmica como esta, que flutua tão inconsistentemente – uma hora é contra a “zoofilia”, em outra é “defesa das crianças contra pedofilia”, em outra é crítica sobre “o que é ou não arte”, em outras é uso apropriado de recursos da “lei Rouanet” – aqueles interessados no debate sério têm de fazer uma escolha estratégica: ou escolhem não cair no falso debate, evitando assim promover seus promotores e legitimar seus falsos pressupostos, na esperança de que, com o tempo, a própria contradição se dissipará; ou, assumindo que a falácia sem resposta está produzindo riscos graves e reais, escolhem intervir, buscando desmistificar a retórica em prol de uma posição legítima, com fundamentação factual e histórica, aproveitando a oportunidade para levantar questões relevantes sobre o “assunto”. As notícias de funcionários de museus agredidos, artistas perseguidos e abaixo-assinados pedindo o fechamento de museus apontam para a segunda conjuntura e o que aqui se faz é uma tentativa rápida de expor pressupostos e apontar uma solução a longo prazo para o que há de verdadeiro nesta crise.
É interessante notar, inclusive como sintoma estético-político da época, como os argumentos de ataque e defesa dos museus ironicamente têm vindo invertidos das posições mais históricas no espectro político. A direita “liberal” pede um controle do conteúdo das obras que leve em consideração seu interesse social, no melhor estilo da censura estatal. A esquerda “comunitária”, por sua vez, defende sua liberdade individual de fruição e de exposição dos seus filhos ao que acharem mais apropriado, no estilo liberdade do consumidor. A relação histórica com a população também se inverte: a direita reivindica o lado “popular” do debate, se colocando como voz das massas indignadas, em um clamor abertamente populista. A esquerda, por outro lado, parte em defesa das instituições e da tradição artística ameaçadas por um bando de “desinformados”, em uma postura difícil de não soar como elitista.
A luta política conhece nos exemplos comuns e tenebrosos do começo do século XX o ataque à autonomia intelectual e artística como primeiros sinais da ascensão de governos totalitários, à esquerda e à direita. A universidade pública e os museus costumam ser os primeiros espaços de resistência a serem fechados ou “normalizados”. No Brasil, não foi e não é diferente. A diferença daqui é que o chamado pela resistência, pela defesa destas instituições se choca com o elitismo estrutural – reproduzido e produzido nestas instituições – e pela consequente falta de relação da maior parte da população com elas. A maior parte da população, ao contrário do que a direita faz parecer, não está contra os museus. A maior parte da população não se importa com os museus, porque os museus e as universidades públicas não fazem parte das sua vida, do seu imaginário, não lhe dá nada diretamente (ou pelo menos é assim que ela pensa), mesmo que ela os financie. Como esperar, então, de alguém que nunca foi ao museu (como é o caso de dois terços dos brasileiros), que ele vá visitá-lo pela primeira vez para defender sua existência? A principal estratégia de defesa dessas instituições tão importantes para a democracia passa por sua democratização radical.
Apesar do esforço louvável de certas iniciativas, como a gratuidade em certos dias da semana, visita guiada para professores e alunos de escola pública e exposições com “apelo popular”, os museus têm poucas condições de sanar em suas portas de entrada a tragédia cultural produzida nas portas de saída das escolas brasileiras. Com isso não se desculpa, claro, o caráter colonial, classista, branco e patriarcal da história destas instituições e que estrutura o mercado da arte no Brasil e no mundo ainda hoje, por mais que esporádicos artistas e curadores bem intencionados se posicionem ativamente contra isso. Iniciativas como o Museu Afro Brasil, o caráter pedagógico da exposição permanente do Museu da Língua Portuguesa, as exposições populares do MIS e, mais recentemente, a exposição das Guerrilla Girls no MASP, para ficar apenas na cidade de São Paulo, são exemplos deste contramovimento. Com isto, não se defende, evidentemente, uma arte exclusivamente aplicada ao público, mas se leva em consideração esta importante relação, que nenhum museu do mundo pode ignorar, abrindo possibilidades para que o esporádico visitante se torne mais habitual e, com o tempo, mais capacitado para fruição de obras talvez mais experimentais, vanguardistas, etc. Se das galerias privadas, da quais não se pode exigir função social alguma que não seja comercial (ainda que haja exceções), não se pode esperar este cuidado na formação do público, dos museus públicos, sim, inclusive como raison d’être, como motivo da sua própria existência. Nestes tempos de ataque, vale a pena lembrar do material: quem funda o museu e para quem ele é fundado. Esta lembrança se concretiza no movimento duplo de criticar a ausência e celebrar seus bons programas que, é importante ressaltar em momentos como este, existem e têm se ampliado nos últimos anos. Não é por isso que eles estão sendo atacados (ou, numa leitura mais otimista, talvez seja justamente por isso).
Foto: Obra da exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre (RS), que foi fechada recentemente depois de protestos de grupos de direita

domingo, 1 de outubro de 2017

Bruno Itan: fotografia de vida, fotografia de guerra na Rocinha

Quem vê a fotografia de Bruno Itan se choca como se estivesse vendo uma montagem ao estilo de Banksy ou uma pintura ao estilo de Bosch. Em suas fotos mais recentes, que retratam a ocupação militar da Rocinha [galeria completa no final do texto], contexto e personagens não se misturam. Parece sempre haver um elemento deslocado, algo sobrando, uma presença alienígena, seja dos civis, invadindo cenários de guerra com seus corpos indefesos, seja de militares ocupando com suas armas e carapaças o cenário de um bairro comunitário. O estranhamento que a presença de tanques de guerra, helicópteros e soldados fardados carregando rifles produz no cotidiano de quem está indo comprar pão, buscar o filho na escola ou toca seu acordeom na sala de casa é capturado e apresentado com precisão por sua fotografia.
Bruno Itan, como morador do Complexo do Alemão, consegue mostrar o que muitas vezes se perde no noticiário tradicional: que se trata de uma comunidade viva, com pessoas reais, que têm seus compromissos e atividades como em qualquer outro lugar do mundo. São pessoas, vivendo suas vidas cotidianas – em um cenário que se tenta retratar sempre como “de conflito”, “de terror”, “em guerra”. A presença do exército em uma área civil produz imagens às quais os olhos não se acostumam com facilidade. A camuflagem não funciona nos tijolos marrons, nas lajes cinzas ou nas ruas de terra. A fiação da rede elétrica e dos gatos que saem dos postes não combinam com os rasantes dos helicópteros. Homens e mulheres de shorts em cima de motocicletas enfileiradas não parecem o adversário robusto para o qual estão preparados os tanques de guerra. Tampouco o pai que empurra a criança em um carrinho de bebês parece uma ameaça aos quatro soldados de capacete e fuzil que o cercam – não se sabe se para protegê-lo ou para vigiá-lo. Uma mulher se espreme contra a parede, tendo encontrado em seu caminho cotidiano para a manicure, para a padaria, para o trabalho, uma operação de guerra.
Não se vê nas fotos de Bruno Itan outras armas que não as do exército. Suas fotos levam imediatamente as perguntas: Como deve ser morar em um bairro em guerra? Como é possível haver uma guerra em um espaço tão pequeno como um bairro? Se é guerra, por que não se alastra para as outras zonas da cidade? Quem é o inimigo? O que dizem para os soldados da ocupação os grafites nas paredes das ruas que eles ocupam, com suas máscaras de Carnaval e pedidos de paz? Serão mensagens cifradas? De quem? Para quem? Um deles traz uma risada irônica diante do soldado que aponta sua arma: RS…
O fotógrafo Bruno Itan tem 29 anos, nasceu em Recife e com quase dez anos de idade se mudou para o Complexo do Alemão com a mãe, “em busca de uma vida melhor”. Seu trabalho fotográfico no Alemão e na Rocinha começou em 2007 – junto com a instalação das primeiras UPPs – e passa por uma vontade de retratar a comunidade a partir de dentro, dos olhos de quem mora nela. Para ele, a ocupação não trouxe mais sensação de segurança para os moradores. Isso viria da desconfiança dos militares contra os próprios moradores, considerados quase sempre, dos 12 aos 25 anos, como suspeitos, fazendo com que a maioria da juventude veja as tropas como seus inimigos. A única solução para o problema do crime seria não um investimento massivo em segurança militar, mas em programas comunitários de educação, saúde, esporte e lazer, disputando a geração que vem agora e que ainda não caiu nas garras do crime. Com dez anos de UPP, os jovens que hoje estão morrendo e matando eram ainda crianças. Se o trabalho social adequado tivesse sido feito, hoje não haveria essas cenas de guerra e estes jovens poderiam estar se dedicando, entre outras coisas, também à fotografia e ao jornalismo.
Bruno Itan acompanha a fotografia chamada “de guerra” e infelizmente também se considera um fotógrafo desse tipo. Sua preocupação, no entanto, é sempre retratar junto com esta dura realidade, o seu outro lado, o lado comunitário, com pessoas do bem que querem paz, curtindo as belas paisagens dos morros do Rio, as crianças empinando pipa, a vida comunitária, o pôr-do-sol etc., aspectos que, segundo ele, sempre faltam na representação violenta que a grande mídia faz da vida nas favelas. Ainda segundo ele, os moradores respeitam muito seu trabalho e se sentem representados por suas imagens. “É o que eles gostariam de mostrar”. Dos soldados, por outro lado, ele sente outro olhar: “Eles me veem com um olhar preconceituoso. Pela minha forma física, por eu ser jovem, magro, baixinho. A minha forma física parece muito com a dos jovens do tráfico. Eles ficam desconfiados de mim, com a câmera na mão e com a coragem de chegar lá perto deles. Eles ficam mais desconfiados de mim do que de outros fotógrafos”. Fotografando a realidade das favelas no Rio de Janeiro já há dez anos, Bruno tenta mostrar que lá onde alguns tentam retratar e produzir apenas guerra e violência, há vida.
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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Afrofuturismo ou raio laser mais barato

 
Por que a África é vista como terra do passado e os países do norte como terra do futuro? A escravidão e o colonialismo se acostumaram a representar o negro como primitivo. Aquele a ser ensinado, civilizado, domesticado, resgatado do passado e contemporanizado no mundo desenvolvido da modernidade. O ocidente moderno declarou a cultura tradicional como retrógrada, inimiga do progresso, e celebrou o novo na mesma medida em que desprezou o velho. Àqueles na periferia do mundo em desenvolvimento, especialmente à figura sempre marginalizada do negro, restou o passado. E nem mesmo um passado justo historicamente, mas um passado extirpado de grandezas. Quando não foram planificadas na categoria vazia do “folclore”, as contribuições técnicas e culturais de civilizações não-europeias foram esquecidas nos livros de história.
Aquiles Mbembe, importante filósofo contemporâneo, define a visão da África pela Europa como a de uma negação constante de si mesma, uma antítese a ser ativamente ignorada, como um “inconsciente”. O que resta dela é paralisada em um presente que não é fluxo, mas algum estranho tipo de presente-passado imemorial. Em “O tempo que se move”, ele descreve a projeção ocidental das sociedades africanas: “A invocação do tempo primordial bastaria. Enrijecidas numa relação de puro imediatismo com o mundo e com elas mesmas, tais sociedades seriam incapazes de enunciar o universal”.
Capa do álbum Fear of a black planet, do Public Enemy
O Afrofuturismo (termo cunhado por Mark Dery nos anos 90 em um ensaio tão sagaz quanto seu título, “Black to the Future”) é um movimento estético e político que tenta reposicionar a negritude no imaginário temporal pós-diáspora. Nos EUA, ele se manifestou, por exemplo, na música de George Clinton, na pintura de Ellen Gallagher e na literatura de Octavia Butler. Levado de volta para a África, ele se manifestou no cinema de Wanuri Kahiu (que em uma bela palestra relaciona elementos tradicionais de diversos povos africanos com cenários futuristas) e na literatura de Ben Okri. (Já em 1947, o escritor nigeriano Amos Tutuola, segundo Greg Tate, utilizava a cultura yorubá ao modo da ficção científica em suas histórias). Do passado primitivo onde foi relegada, a cultura com origens africanas retoma para si um lugar nas hipóteses do futuro: exploração espacial, tecnoxamanismo, música eletrônica de vanguarda, viagem no tempo, sexualidade ciborgue e queer. O mundo do futuro, até então limitado a sua representação nórdica, passa a ter não apenas protagonistas negros, mas as próprias manifestações culturais negras propõem um novo tipo de futuro a partir de pressupostos, narrativas e questões que não digam exclusivamente respeito à tradição cristã europeia e patriarcal. Libera do monopólio a especulação histórica e tecnológica produzindo um efeito político poderoso: projetar seu próprio grupo em um futuro comum.
Jean-Michel Basquiat – Molasses
A indústria cultural está atenta às mudanças de consumo e desejo de representação de seu público. Historicamente, os super-heróis negros foram dotados com poderes ligados às forças primordiais como elementos da natureza, animais, etc. A mutante negra dos X-Men mais conhecida, a Tempestade, é uma rainha africana que controla trovões. Seu sucessor mais recente, no entanto, o Super Choque, já combina elementos tecnológicos com poderes elétricos. Do trovão à eletricidade. Movimento semelhante aconteceu com o marido da Tempestade, o Pantera Negra, que apesar da relação política-animal evidente, é líder do país mais avançado tecnologicamente na Terra do universo Marvel: Wakanda. Em 2018, será lançado o filme do Pantera que misturará ação, política e ficção científica. No universo dos quadrinhos e dos cinemas da DC, é o Ciborgue quem encarna o Afrofuturismo, misto de humano e robô, responsável por todas as máquinas da Liga da Justiça.
Embora o termo tenha surgido nos Estados Unidos, as semelhanças históricas com a escravidão e colonização fazem com que as reflexões do Afrofuturismo encontrem terra fértil no Brasil. Atenta para isso, Kênia Freitas organizou em novembro de 2015 a Mostra Afrofuturismo, “Cinema e Música em uma Diáspora Intergaláctica”, e sua apresentação ajuda a entender a potência dessa estética: “As populações negras do continente americano são as descendentes diretas de alienígenas sequestrados, levados de uma cultura para outra. Os seus antepassados, separados dos seus territórios originais, foram abduzidos como escravos para o Novo Mundo”. A mostra exibiu filmes importantes do movimento estadunidense além da manifestação afrofuturista mais importante do cinema brasileiro, o filme “Branco Sai, Preto Fica” (2015) de Adirley Queirós. O mundo distópico de um homem negro, vítima de um tiroteio e de uma ação racista da polícia na periferia, reage com parafernália tecnológica e viagens no tempo, propondo explodir uma Brasília segregada com gambiarras sci-fi de ondas de rádio. As ondas de rádio emitidas pelo radialista em sua cadeira de rodas são ainda mais explosivas por carregarem, além de palavras de ordem raivosas, o ritmo poderoso e nostálgico da música de baile black. O filme faz pensar: o que há de mais futurista do que a fiação improvisada nas origens da música eletrônica negra? Do que a tipografia espacializada e tridimensional do grafite? Do que a história hacker do movimento Hip Hop, berço de técnicas inovadoras de edição e manipulação de sons remixados à serviço da dança e das festas de comunidade?
Capa do álbum Quanta, de Gilberto Gil
As teorias da conspiração que não abrem mão da relação entre o Antigo Egito e os alienígenas (parece ser mais fácil imaginar uma invasão alienígena, do que aceitar uma civilização clássica não europeia) são invertidas no Afrofuturismo e os egípcios é que passam a se tornar mestres da técnica. Seu principal precursor, o músico estadunidense Sun Ra, embaralhou o Antigo Egito com as civilizações espaciais no seu jazz cósmico dos anos 70. Suas bandas e álbuns carregam nomes icônicos como Sun Ra visits planet Earth, The Nubians of Plutonia, Interstellar Low Ways, The Futuristic Sounds of Sun Ra e sua obra-prima que deu origem ao filme homônimo Space is the Place. Esta atualização do Egito Antigo também se manifestou na música negra brasileira. (Essa é a mistura do Brasil com o Egito!). A tentativa parece ser, através de uma revisão histórica positiva, religar um passado africano grandioso com o presente desolado de que ele foi separado. Reencontrar as narrativas do Egito no passado arcaico e no futuro, como faz Jorge Ben com Hermes Trismegisto e Errare Humanum Est, e perguntar: Eram os deuses egípcios astronautas? Ou relocalizá-las no Pelourinho como faz o Olodum em “Faraó Divindade do Egito”: “Despertai-vos, a cultura Egípcia no Brasil, / invés de cabelos trançados / veremos turbantes de Tutancâmon. / E nas cabeças se enchem de liberdade, / o povo negro pede igualdade / e deixamos de lado as separações”.
Obra do artista plástico estadunidense Rammellzee
É impossível falar de música negra brasileira e tecnologia sem se referir a Gilberto Gil e o fino equilíbrio que ele estabelece em sua obra entre modernidade e tradição. Gil conserva o passado sem medo da tecnologia que surge – ele prefere devorá-la em uma antropofagia temporal, vendo na tecnologia uma continuação ou uma semelhança com práticas tradicionais. Seu cérebro eletrônico pode tudo, ou quase tudo. O Expresso 2222 partia de Bonsucesso em 1972 e levava direto ao fim do milênio no ano 2000. Seu álbum Quanta, de 1997, encarna esta tensão como poucos na história da música brasileira. A segunda canção é uma samba, no estilo tradicional de homenagem aos mestres do passado, mas dedicado entre outros ao físico César Lattes. A canção que dá título ao álbum se refere às grandezas e belezas quânticas e celebra as relações não excludentes entre ciência de ponta e arte clássica, celebra o quântico dos quânticos e o cântico dos cânticos: “Sei que a arte é irmã da ciência / ambas filhas de um Deus fugaz / que faz num momento / E no mesmo momento desfaz”. Empunhando uma “lâmina quântica do querer / Que o feiticeiro o sabe ler”, Gil condena os charlatões da ciência e da arte, ao mesmo tempo em que celebra as tecnologias modernas e aquelas que vêm da cultura popular. Se curam, se funcionam, então vão juntas a aspirina que “aspira a dor” e a os banhos de folhas e a pílula de alho, “da planta antibiótica / da velha medicina / que desenvolvimento!”. As tradições são atualizadas no tempo: “Com quantos gigabytes / Se faz uma jangada / Um barco que veleje / Que veleje nesse infomar / Que aproveite a vazante da infomaré / Que leve um oriki do meu velho orixá / Ao porto de um disquete de um micro em Taipé”.
Ellen Gallagher – Abu Simbel
ficção científica brasileira tem um dos seus inícios na obra O presidente negro (1926) de Monteiro Lobato, que tem um problemático fundo eugenista. Ali a questão racial é um problema nacional a ser resolvido pelos brancos, bons cidadãos, através de esterilização negra via raios gama. No Afrofuturismo, por outro lado, a técnica serve em geral para solucionar ou refletir sobre a opressão racial da perspectiva daqueles que a experienciam. Janelle Monae, cantora e atriz estadunidense contemporânea, dedicou três álbuns (e mais quatro futuros) ao seu cenário futurístico conceitual, Metropolis, em que a narrativa de uma androide numa sociedade distópica traz elementos para pensar a segregação racial e social no presente dos EUA. Ela explica em uma entrevista: “Eu escolhi uma androide porque a androide para mim representa “o outro” em nossa sociedade. Eu posso me conectar com “o outro”, porque existem tantos paralelos com a minha própria vida – só de ser uma artista mulher e afro-americana na indústria musical de hoje. O androide representa o novo “outro” para mim”. É difícil não pensar no feminismo futurista do “Manifesto Ciborgue” de Donna Haraway: “O ciborgue é um tipo de eu – pessoal e coletivo – pós-moderno, um eu desmontado e remontado. Esse é o eu que as feministas devem codificar”.
Raper Sharaya J
Muitos dos temas presentes em distopias futuristas já aparecem no presente (e no passado) cotidiano de grupos negros: vigilância e controle estatal, bioengenharia, necropolítica, segregação, necessidade de improvisos tecnológicos, etc. Talvez fosse possível dizer que a representação distópica branca nada mais seja do que a projeção da história negra no seu próprio futuro. O comediante Dave Chappelle lembra ironicamente sobre a dificuldade de se fazer um filme de viagem no tempo ao passado com um protagonista negro… Seria isso uma explicação para a instigante sabedoria, como se eles entendessem mais profundamente o funcionamento destes mundos, de personagens negros em ficções científicas como Morpheus e a Oráculo em Matrix, Joana em 3℅, Nick Fury nos Vingadores, etc.? (Trata-se também de reivindicar uma presença apagada. Ytasha Womack, responsável pelo estudo Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture, se perguntou quando criança: por que a voz do Darth Vader é feita pelo ator negro James Earl Jones, mas sua imagem é de um ator branco? O mitológico comediante Richard Pryor vinga esta ausência em sua esquete antológica “Star Wars Bar”).
O fato de que as práticas culturais negras tenham muitas vezes se voltado ao passado como forma de resistência, no resgate de uma tradição que esteve sempre ameaçada pela violência colonial, não se opõe a um olhar voltado, agora, ao futuro tecnológico. Estes dois focos são complementares e fundamentais para uma vivência mais plena do presente, construído como intersecção entre a memória do passado e a projeção de futuros coletivos. Para voltar à Mbembe: “o presente enquanto experiência de um tempo é precisamente o momento no qual se emaranham diferentes formas de ausência: ausência dessas presenças que não estão mais e das quais nos lembramos (a memória), e ausência desses outros que não estão ainda e que antecipamos (a utopia)”.
Confira, abaixo, uma lista com mais alguns materiais sobre o assunto.
Clipes, vídeos e trailers
Playlist de música afrofuturista no Spotfy
Coletânea de capas de álbuns afrofuturistas
https://afrofuturisticalbumcovers.tumblr.com/
Imagens de moda e ensaio em português sobre o Afrofuturismo
http://mequetrefismos.com/modas/dossie-afrofuturismo-saiba-mais-sobre-o-movimento-cultural/
Catálogo da Mostra Afrofuturismo, fundamental para quem quiser se aprofundar na questão em língua portuguesa
http://www.mostraafrofuturismo.com.br/Afrofuturismo_catalogo.pdf
Fábio Kabral, que escreve romances e reflexões sobre o Afrofuturismo.
Site brasileiro sobre super-heróis negros
http://www.ladonegrodaforca.com.br/
*Tomaz Amorim Izabel, 29, tem graduação e mestrado em Estudos Literários pela Unicamp e é doutorando na mesma área na USP. É militante da UNEAfro Brasil. Além de crítica cultural, também escreve poesia [tomazizabel.blogspot.com] e coedita o blog Ponto Virgulina de traduções literárias. Publicou traduções para o português de Franz Kafka e Walt Whitman
Foto de destaque: Arte do álbum “ArchAndroid” de Janelle Monae