quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Cultura hipster em Amantes Eternos, de Jim Jarmusch



O filme "Amantes Eternos" (Only Lovers Left Alive, no original), escrito e dirigido por Jim Jarmusch em 2013, com Tilda Swinton, Tom Hiddleston e Mia Wasikowska no elenco, responde com um sonoro "Sim!" à pergunta: é possível dizer algo de profundo em um filme de vampiros? Parece que sim, se o foco da trama não forem poderes especiais, misticismo ou sensualidade vulgar. “Amantes Eternos” interessa porque representa esteticamente o negativo do drama humano da mortalidade, ou seja, a imortalidade e seu impacto na psique e na fruição estética daqueles que vivem por séculos entre os humanos. Em outras palavras, os tempos e as modas estéticas passam e seus fruidores se cansam, o tempo do mundo passa mais rápido do que o tempo interior. Mas o que isso tem a ver com nosso contemporâneo de mortais? O filme começa no fim da vida imortal dos seus personagens. Principalmente do vampiro Adam que se dedica à música no cenário pós-econômico e pós-apocalíptico (dá no mesmo) de Detroit. Há um cansaço em relação a todas as coisas e pessoas humanas, chamadas pelos vampiros de “zumbis”. A própria cultura, único refúgio, vai dando sinais de cansaço. Daí a chegada de sua companheira Eve, muito mais habilidosa, e talvez piedosa, na percepção das pequenas belezas cotidianas. É ela quem conhece o nome das plantas e dos animais, quem aprecia a beleza da poesia árabe, mas também da habilidade do homem que rola um cigarro na mesa ao lado. A composição visual do filme não deixa dúvidas, suas cores claras, do cabelo, das vestimentas e das luvas, ela é o oposto complementar de Adam.
É difícil não ver um tipo contemporâneo bastante comum, o hipster, no charme retrô do filme de Jarmusch. Há uma celebração decadente do passado em detrimento do presente sujo. Mesmo a apreciação das realizações artísticas e científicas é limitada aos grandes nomes da história. Há um retro futurismo (quase steampunk) nas invenções de Adam, sua geringonça de máquinas cósmicas, sua conversa com Eve pelo Skype via uma televisão de tubo! Este gosto por um passado grandioso, porém desprezado pelos contemporâneos, aparece nos óculos Ray Ban clássicos dos protagonistas, nos vinis girando junto com as câmeras sobre as vitrolas e os corpos dos personagens, nas guitarras clássicas de edição limitadíssima, no tempo lento dos gestos e das expressões, na própria fotografia do filme com um granulado quase analógico. Não se trata apenas de uma questão de gosto, mas também de uma representação crítica de certos elementos vampirescos e profundamente decadentes deste tipo cultural contemporâneo, porém não inédito. O hipster é a encarnação burguesa e contemporânea do dândi, figura recorrente da decadência europeia desde o romantismo inglês de um Byron, até o simbolismo francês de um Huysmans ou Baudelaire. Walter Benjamin, estudando a Paris do século XIX, relata uma moda da época, em que se protestava contra a velocidade da cidade grande levando tartarugas em coleiras para passear. Os vampiros de Jarmusch atualizam o dândi na figura do hipster como vampiro suicida. O vampiro Adam é um estudo da psicologia hipster, de sua auto absorção e culpabilização do mundo, de sua melancolia fundada no delírio de grandeza - cada um é o único herói de um mundo decadente, “eu não tenho heróis”, diz Adam à frente de sua parede cheia de fotos de escritores e músicos canônicos. Eva tenta lhe explicar: "A auto obsessão é um desperdício de vida". Sua frieza “cool” de morto-vivo, sua postura inabalável diante de tudo, a reação cadavérica amplamente democrática diante de qualquer coisa que porventura pouse diante de seus olhos ansiosos e mudos. Que isso seja só do ponto de vista do que sai e, nunca, do que entra, é óbvio. Buscar os últimos discos ou os discos mais antigos, os óculos da última temporada ou os mais retrôs, o livro autografado no sebo, a sinfonia inacabada do compositor obscuro, uma alucinação pelo consumo do alpha ao ômega, com a única condição de que não se reaja publicamente, em comunidade.
Mas o filme de Jim Jarmusch não é apenas sátira deste cansaço do consumo estético - pairando acima de todos os zumbis de quem ele tem um mais ou menos disfarçado nojo protofascista - mas um tipo de terapia, de toque amigo, como é o toque de Eva, depois que ela tira as luvas. Adam desabafa: o fundo da ampulheta está se enchendo de areia, é o fim. Basta virá-la, responde Eva. Quando menos se espera, andando pelas ruas mais desgastadas da cidade mais antiga, quando o cansaço de si, do mundo, da arte (Shakespeare, como quintessência do pó, morto!), da própria mulher que se ama, quando se se convence a dar uma última volta antes do suicídio, alguém canta, o mundo desaba para ressurgir de novo, o amor aparece na face do jovem casal a ser devorado e transformado, vida para mais mil anos. Esta virada da ampulheta, no entanto, não pode ser arrancada à força, ativamente, como na fúria consumista interior do hipster (representado pela vampira hedonista Ava, de quem Adam sabiamente recusa o toque sem luvas). Tampouco pode-se esperá-la, passivamente, como na morbidez hipster de Adam diante de todo o mundo exterior, eliminado sob a rubrica da zumbilândia. O encontro acontece para quem ainda está atento e apenas no momento oportuno. A morte de Marlowe (por que ele, sendo também vampiro, morre? Por ser Shakespeare, inventor do “humano”, como diz Harold Bloom?) reinsere uma profundidade na vida imortal dos dois protagonistas. A morte como destino e, ao mesmo tempo, como acaso. Acaso da morte, mas também da vida, como mostra a bela cena final com a voz e a música de Yasmine Hamdan. Esvaziados, perto, a uma decisão, da morte afinal ou da decisão conjunta de viver, juntos e sincronizados, ainda que do outro lado do universo, emaranhados quanticamente como na teoria de Einstein que Adam explica, eles decidem: viver e ampliar sua comunidade com o jovem casal. O tempo hipster sai do estado-morto vivo e vira tempo vivo comum, mortal.

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