terça-feira, 17 de novembro de 2015

Cidade-dormitório


O termo cidade-dormitório se refere a municípios e bairros de grandes metrópoles onde a inexistência de uma esfera social autônoma exige que seus moradores saiam da cidade durante a maior parte do dia para buscar trabalho, educação e lazer em outros lugares (na maioria das vezes, a horas de distância de lá) e voltem apenas de noite e/ou nos fins de semana para suas casas. O próprio termo já designa uma diminuição brutal na ideia de cidade: de um aglomerado de habitações e instituições, mistas de espaço público e privado, em que a vida coletiva de uma sociedade se desenvolve em uma troca constante, a um aglomerado de habitações, com esporádicos comércios e reduzidos espaços públicos, ligados a uma rede de transporte que leva seus sonolentos habitantes para a vida coletiva em outro lugar. Se é verdade que a cidade é uma forma histórica de habitação ligada ao desenvolvimento econômico e sua concentração por grupos em regiões específicas, se é verdade que a forma cidade talvez seja um dos empecilhos principais para se pensar uma organização coletiva mais justa e ecológica, também é verdade que ela possibilitou uma troca entre pessoas e culturas em uma escala até então inédita, com resultados tão fantásticos e contraditórios quanto a produção cultural dos grandes impérios (Romano, Inca, Mali, etc) e os horizontes cobertos de barracões nas favelas em plena expansão do terceiro mundo no terceiro milênio. A cidade-dormitório é a redução destas possibilidades à mera habitação privada: cidade que não é aldeia, nem roda, nem ágora, mas apenas quarto de repouso do trabalhador. Ela poderia ser chamada também de cidade adormecida, aquela que dorme durante as noites quando seus cansados habitantes voltam das cidades vizinhas, aquela que dorme durante o dia quando é esvaziada pela quase ausência de seus habitantes.
O fluxo constante de pessoas para fora da cidade, seja para atividades de trabalho e estudo ou de lazer, faz com que não haja uma cena comercial ou cultural na própria cidade. Assim, seus trabalhadores e estudantes se relacionam com pessoas de outras cidades em outras cidades e quase nunca com pessoas da cidade-dormitório, nela. (Para os que ficam, a vida pública é reduzida à vida de bairro, se é que o bairro não tenha sido ainda transformado em condomínio ou em favela). O efeito produzido por este deslocamento é uma alienação tanto do espaço, quanto dos seus co-cidadãos. De forma compreensível, o sujeito que se dirige à metrópole ou ao centro, imagina que deixa para trás os outros cidadãos. Do esquecimento de que a maioria dos outros habitantes também sai, surge uma caraterística distintiva da personalidade do cidadão da cidade-dormitório: um tipo de arrogância contra seus patrícios. Se esquecendo que, por definição, quase todos saem, este cidadão adormecido - com a percepção alienada para seus arredores, ligada apenas no fora, no longe -  imagina que é o único que viu o mundo em pleno funcionamento, as possibilidades da metrópole, o mundo acelerado do trabalho e da cultura e sua troca incessante. No fim, uma cidade de pessoas que coletivamente se acham individualmente mais cosmopolitas e menos provincianas do que seus pares. Uma população, portanto, irônica: co-isolada, co-condescendente, co-arrogante. O efeito político previsível do transplante da vida pública local para outros lugares diversos é a prevalência da política privada, familiar, baseada em velhas oligarquias e seus parceiros de “negócios” sustentados pela frágil máquina pública. Como debater política com meus conterrâneos se frequentamos praças de cidades diferentes? 
A máquina colonial, em pleno funcionamento, opera um tipo específico de tráfico humano: o de potencial. O Brasil, por exemplo, exporta brasileiros talentosos para países do primeiro mundo. Lá, imagina-se, eles terão maior possibilidade de desenvolverem seus trabalhos. O país estrangeiro ganha, o brasileiro ganha - o Brasil perde. Esta fuga de potencial também caracteriza a cidade-dormitório. Sem espaço para desenvolver suas habilidades e o estilo de vida que mais lhe agrada, geração após geração abandona a cidade em busca de lugares que lhe convenham mais. O movimento se retro-alimenta, cada geração que abandona o lugar ajuda a manter o vácuo que expelirá também a geração futura. O caráter de cidade-dormitório permanece, assim, inalterado. Uma única geração que ficasse e ajudasse a construir na cidade uma manifestação específica, local, coletiva, a partir das demandas das pessoas que habitam ali e da experiência adquirida fora, em outros centros, poderia interromper este ciclo. Tornar cada periferia e cada cidade-dormitório em um centro vivo de si mesmo, em diálogo permanente com os outros, seria a tarefa desta geração. Não um retorno conservadorista, bairrista, mas uma abertura verdadeira, que só pode haver a partir de si, ao mesmo tempo, cosmopolita e local. Este seria um tipo de sonho para acordar as cidades adormecidas.

3 comentários:

  1. Existe dois temas interessantes que o texto chega a mencionar, que talvez valesse a pena talvez desenvolver mais. O primeiro, os motivos da cidade-dormitório não ter se esvaziado por completo. Isso implica em discutir se ela foi sempre um território alienado ou este processo é historicamente datado. O segundo, a ampliação desta dinâmica para áreas maiores do que uma grande metrópole e seus entornos imediatos. Caio Prado Juniorr pautava que a forma como o processo histórico de ocupação se deu fez com que a cidade de São Paulo "sequestrasse" e concentrasse toda uma vida urbana e cultural que, em circustâncias diferentes, teria sido dispersa em dezenas de outros centros dispersos ao longo do interior do estado e, mais tarde, do país. E estas dezenas de centros médios por sua vez mesmo sem serem grandes metrópoles "sequestram" e concentram cada um as funções urbanas cada um de pequenos municípios da própria região que polarizam.

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  2. "A quem em nossa terra percorre tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ora em via disso,
    tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurge de tantas ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. Nilo emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.
    A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada
    sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital — e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.
    Em São Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do
    chamado Norte.
    Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.
    Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes.
    Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de há muito, em matéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante símbolo do viver colonial — o carro de boi.

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  3. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiuna; casarões que lembram ossaturas de megatérios donde as carnes, o sangue, a vida para sempre refugiram.
    Vivem dentro, mesquinhamente, vergônteas mortiças de famílias fidalgas, de boa prosápia entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem da pátina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras, paira o bafio da morte. Há nas paredes quadros antigos, crayons, figurando efígies de capitães-mores de barba em colar. Há sobre os aparadores Luís XV brônzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados – e por tudo se agruma o bolor râncido da velhice.São os palácios mortos da cidade morta.", "Avultam em número, nas ruas centrais, casas sem janelas, só portas, três e quatro: antigos
    armazéns hoje fechados, porque o comércio desertou também. Em certa praça vazia, vestígios vagos
    de “monumento” de vulto: o antigo teatro — um teatro onde já ressoou a voz da Rosina Stolze, da
    Candiani...Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só ficam as moças — sempre
    fincadas de cotovelos à janela, negaceando um marido que é um mito em terra assim, donde os
    casadouros fogem. Pescam, às vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu delegadozinho de
    carreira — e o caso vira prodigioso acontecimento histórico, criador de lendas.
    Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio — magro estafeta
    bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir-e-vir com duas malas postais à garupa,
    murchas como figos secos.
    Até o ar é próprio; não vibram nele fonfons de auto, nem cornetas de bicicletas, nem campainhas
    de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plás-plás de mascates sírios. Só
    os velhos sons coloniais — o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igreja, o rechino dos carros de
    boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em bando rumoroso cruzam e recruzam o
    céu. No campo não é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de morraria áspera,
    onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um
    Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que
    veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o
    Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína;
    ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados.
    À mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se
    numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas. A gente olha assombrada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada mais!... A mesma morraria
    nua, a mesma saúva, o mesmo sapé de sempre. De banda a banda, o deserto — o tremendo deserto
    que o Átila Café criou.
    Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pousada no topo dum
    espeque. Aproxima-se devagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida;
    permanece imóvel. Chega-se inda mais, franze a testa, apura a vista. Não é ave, é um objeto de louça...
    O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo a Oeste, esqueceu de levar
    consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando nitidamente uma grandeza
    morta, até que decorram os muitos decênios necessários para que a ruína consuma o rijo poste de
    “candeia” ao qual o amarraram um dia — no tempo feliz em que Ribeirão Preto era ali.."

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