terça-feira, 5 de abril de 2016

A menina morta, de Cornélio Penna



(Imagem retirada da bela resenha de Ana Vilela)

A linha absoluta que separa os brancos e negros escravizados no patriarcalismo escravista encontra em A menina morta, romance histórico de 1954 de Cornélio Penna, ao mesmo tempo reforço e questionamento. Porque embora o roubo do trabalho escravizado pela dominação branca não tenha limites e se utilize de todos os recursos para sua manutenção (psicológicos, simbólicos, materiais, etc), há uma força contraditória de coesão que insiste em aproximar, ainda que separados, os dois lados. A conhecida afetividade entre o filho branco do senhor e a ama de leite negra não deixa esquecer que estas contradições estão na própria fundação da sociedade brasileira e em permanente atualização. A última aparição cultural célebre desta relação de, literalmente, amor e ódio se deu no filme “Que horas ela volta”, de Anna Muylaert. No romance de Cornélio, Penna encontram-se pulverizados estes mecanismos de manutenção de dominação sob os mais variados disfarces. O primeiro e maior deles é quem dá título ao livro: a própria menina morta. Sua presença, a única capaz de harmonizar a crescente tensão na casa dos senhores, adorada e pacificadora dos ânimos de todos, dos brancos aos negros escravizados, representa ao mesmo tempo a humanização e manutenção do sistema escravocrata. Sua descrição angelical reiterada pelos mais variados personagens ajuda a intensificar a sensação de mal-estar no leitor contemporâneo que, ao mesmo tempo, se identifica e quer se afastar de sua figura. Ela é apresentada ao leitor pela figura de José Carapina, escravizado que é supliciado pelo sistema do Grotão, mas ainda assim sofre, chora e ritualiza a morte da menina. É apenas nos personagens negros que surgem, com permissão, as cores, a vida e a música (vide a terrível cena da recém-chegada Carlota tocando piano e perturbando profundamente todos os habitantes da casa). O choro de Carapina, o profundo sofrimento do escravizado, guarda a chave do tipo dominação apresentado pelo romance: “Na alma do velho carpinteiro cativo enovelavam-se pequenos e confusos problemas, que se formavam e desapareciam sem que ele pudesse perceber onde estava a verdade e até onde ia a tentação do demônio, pois parecia-lhe grande crime estar a fazer o caixão onde seria aprisionada a Sinhazinha”. Ele chora por aprisionar aquela que chama de Sinhazinha, ou seja, aquela que lhe aprisiona. Não há nos escravizados, salvo raras exceções, ódio em relação aos seus dominadores brancos, senão o contrário. Representa-se neste romance o que Etiénne de La Boétie chamou de “servidão voluntária” e – em grau diferente – o tipo que a literatura e o movimento negro americano posteriormente chamou de “Uncle Tom”. Envolvido pelo sistema de dominação há gerações, este sujeito parece não conseguir requerer algo que nunca conheceu. A dominação, se bem que mantida a ferro e fogo, é também mantida na base da cordialidade, brasileiramente. São servidos sucos nas colheitas, são permitidos aos escravizados que cantem e dancem, são apatronados pela menina morta que “pedia negros” e que lhes dava em esmolas chapinhas de cobre. A revolta da dominação dá lugar contraditoriamente a um desejo de perpetuação da dominação – em uma estrutural paternal – e de crença que esta manutenção é a melhor - ou a única - das coisas possíveis. Daí a alegria dos escravizados com a chegada de Carlota tão obviamente convocada para ocupar o lugar da menina morta. Daí sua profunda confusão, e talvez rancor, após sua alforria pela nova Senhora.
Desta inversão de sentimento que se percebe no romance, cumplicidade e ternura, ao invés de revolta, parece surgir, em algum tipo de justa economia psicológica e sentimental, uma segunda inversão, como no clássico modelo da dialética do senhor e do escravo de Hegel. Aqueles roubados em sua vida são os únicos a dispô-la plenamente. O mundo branco da casa senhorial é assombrado, desde antes da morte da menina, pela morte. O clima de paranoia e mal-estar que deve muito a figura do Comendador, mas que não o deixa imune, perpassa cada uma das mulheres da casa. Carlota, as agregadas e as escravizadas sentem pairar sobre si qualquer coisa de tragédia próxima. A morte é a recompensa pelo roubo da vida, a tal ponto, que a escravidão como que contamina seus frutos, tornando todos também prisioneiros. A heroica recusa do médico que não quer o dinheiro sujo de sangue é um dos pontos de subversão no livro. Como na antiga história do Barba Azul, sabe o jovem noivo que a opulência do Grotão é mantida com sangue amaldiçoado. Buscando livrar-se do peso da dominação Carlota liberta os escravizados. A cena de seu desfile na senzala finalmente libertas – ambas, a senhora e a senzala – como que mostra a partida deste peso. “Com o medo inexplicável que prendera seus movimentos, que limitara e constringira a vitalidade de seu corpo todo aquele tempo, agora se dissipavam diante da outra os sinais humanos de poder e de dominação, cuja força a tinham mantido prisioneira. Podia caminhar assim, serenamente, com passos firmes que não teriam repercussão alguma naquela enorme masmorra vazia diante dela”. A falta de repercussão dos passos é intimamente ligada ao peso, da própria paisagem do Grotão que assusta Celestina pela manhã, mas também do trabalho na terra, da escravidão ligada ao homem que é Senhor de outros homens, e de outras mulheres. Os passos firmes sem repercussão, ao contrário dos passos do senhor ouvidos por toda a casa, contrastando com a resistência passiva da mãe que flutuava ao invés de andar, permitem o primeiro gesto verdadeiro de libertação de Carlota. O medo daí advindo é medo natural de quem vê o mundo, em liberdade, pela primeira vez, ela e os escravizados.
A Menina Morta contém ao mesmo tempo os pontos de vista do narrador e as impressões subjetivas das personagens. Salta de um ponto de vista ao outro, sem avisar o leitor. A falta de estranhamento que daí advém indica uma cumplicidade nas concepções de mundo entre estes dois polos. Assim como todos os personagens do romance – com exceção talvez do médico que se casa com Celestina – o narrador também é racista, também está integrado ao esquema escravocrata e dentro dele não parece ser capaz de critica. A Menina Morta faz parte de uma linhagem diferente de representação da dominação na escravidão. A angústia que causa é diferente daquela ligada à descrição detalhada, naturalista, dos suplícios dos negros, que tem em Castro Alves seu modelo, ou da virada efetuada por escritoras como Carolina Maria de Jesus e Toni Morrison que representam a opressão do ponto de vista narrativo dos próprios oprimidos. A angústia vem da falta de revolta, da naturalidade, com que seres humanos são dilacerados em sua humanidade na subserviência a outros que se supõem e são supostos superiores. Durante toda a narrativa o leitor contemporâneo se surpreende e se revolta com pequenas frases, lançadas ao acaso, tanto da boca de brancos, como de negros – o que causa mais espanto e revolta -, que compõem e reforçam a ideologia da hierarquia entre as raças. A simplicidade com que Libânia, ao sugerir uma ideia à nova Senhora, inicia é altamente perturbador: “Sinhá Dona Celestina, tive tão boa ideia, que nem parece de preto”. Desta cumplicidade racista, partilha sem pudor algum o narrador de Cornélio Penna, como na seguinte passagem: “Grande doçura suavizou seus traços rudes, marcados pela tatuagem de sua terra natal, e coçou por momentos, hesitante, a cabeça, antes de dar a conhecer que estava perto e tinha visto que elas haviam interrompido o trabalho, falta essa em geral castigada com palmatoadas. Era preciso ralar para manter o respeito exigido, por ser considerada a mais graduada da sala, mas seu velho coração, nascido entre selvagens antropófagos era, entretanto, o mesmo que batia naqueles outros peitos suavizados pela mistura de sangue branco”. Alinhado ao sistema, ele possui características visíveis ainda hoje no Brasil, em seu insuperado trauma histórico da escravidão. O sadismo com que algumas cenas são narradas faz pensar justamente em feitores e senhores que castigavam – ou em carcereiros e policiais de nossos atuais sistemas penitenciários – apenas pelo prazer de ver sofrer seus subordinados.
Há algo também da potência senhorial na maneira com que a narrativa é constituída. Parece ao leitor que algumas informações são deliberadamente subtraídas da narrativa. Informações cruciais, como o fato de haver mais dois filhos homens ou mesmo o nome de alguns personagens, são lançadas apenas posteriormente na narrativa, deixando o leitor em situação semelhante a das agregadas da casa. Carlota se desespera tentando montar o mosaico da angústia que perpassa a fazenda e com ela se coloca o leitor, atrás das falas de todos os personagens, buscando informações mínimas que expliquem o ar de mistério do texto. Nem mesmo o motivo de doença da menina morta, ou seu nome, por exemplo, são explicados. O leitor, como Carlota diante do pai, aguarda do narrador informações que seu poder senhorial o permitem esconder. Sobre isto afirma Luiz Costa Lima: “Em A Menina Morta é esse trânsito que se interrompe; melhor dito, o esforço da ordem patriarcal consiste em impedir o próprio fluxo entre eventos e efeitos psicológicos que se fixariam no relato; em impedi-lo, transtorná-lo e apagar seus rastros”. O poder senhorial como poder de esquecimento, de impedimento da narrativa, semelhante ao trauma. A narrativa composta como que a partir de uma memória incompleta, fragmentada, assemelha-se, em certo sentido, a memória brasileira – e portanto, a sua constituição e identidade presente - da escravatura: cindida.
Apontado, portanto, o posicionamento deste narrador, não caberia um questionamento sobre a moralidade do romance? Não, primeiro porque tais questões têm o hábito de interferir na autonomia do texto, privilegiando questões exteriores, perdendo assim de vista a forma com que a obra efetivamente diz o que diz. Ao escrever um romance histórico sobre a escravidão em um momento posterior, em que o próprio sistema escravocrata já havia por várias maneiras sido criticado, o autor conseguiu a difícil tarefa de escapar de um moralismo anacrônico. Anacronismo este que poderia, através de uma comoção artificial romântica, borrar as contradições da época e mistificar sua compreensão. Sua solução foi inventar este narrador identificado ao sistema que oprime e que também sofre (ao invés de ser representado irrealisticamente como mera encarnação do mau) e que aos poucos, através de Carlota, se dá conta, ainda que de forma confusa, da brutalidade do sistema. A virada como modelo literário de superação, não a mera projeção positiva ou negativa, portanto: “Depois, percebeu alguns móveis estranhos com pontas que furavam o ar de forma esquisita, e logo compreendeu mais do que viu, ter sido uma árvore inteira deitada junto da parede do fundo. (...) Realizou então serem escravos no tronco, e lembrou-se a sorrir das histórias contadas de que a menina morta ia “pedir negro”... Mas, o sorriso gelou-se em seus lábios, porque agora via o que realmente se passava, quais as consequências das ordens dadas por seu pai e como aqueles homens velhos, os feitores de longas barbas e de modos paternais, que a tratavam com enternecido carinho, cumpriam e ultrapassavam as penas a serem aplicadas. Sabia agora o que representava o preço dos pedidos da menina morta, que a ela custavam apenas algumas palavras ditas com meiguice. E teve ódio da criança ligeira de andar dançante, a brincar de intervir vez por outra, em favor daqueles corpos que via agora contorcidos pela posição de seus braços e pernas, presos no tronco, e cujo odor de feras enjauladas lhe subia estonteante às narinas”. Finalmente pode o leitor, seguido pelo narrador branco e senhor de escravizados, acompanhar a tomada de consciência da personagem – e sentir todo o horror advindo daí, horror tão grande a ponto de manchar a até então cândida imagem da menina morta. Parafraseando Sartre, ninguém é inocente no Grotão.

Um comentário:

  1. Estou lendo, estou na pág 287. Às vezes é bem monótono este livro... os primeiros capítulos são maravilhosos... depois ele cai... às vezes sobe como na parte em que estou: o romance entre um senhor e a ama de leite de sua esposa... espero chegar ao fim das quase 700 páginas. Vamos lá Amanda Fernandes!

    ResponderExcluir