terça-feira, 19 de abril de 2016

A orelha de O Manifesto Lenitivo, de André Nogueira


Que a responsabilidade que pesa sobre a escrita desta orelha aja como o peso da espada de Pedro sobre a orelha do romano. O Manifesto Lenitivo tenta uma síntese difícil, mas terrivelmente necessária em nossos tempos: aquela proibida entre religião e política. O Manifesto faz com que estas duas esferas do espírito se ensinem ao invés de se submeterem uma a outra. O materialismo ensina ao messiânico que a redenção só pode ser invocada através de uma prática redentora aqui. O messiânico ensina ao material a dimensão cósmica do tempo e a radicalidade da fé. Esta poesia desce das nuvens reais de Saturno até encontrar a vulgaridade das periferias e dos pequenos, até reencontrar seus anéis na trajetória quântica dos elétrons. O processo lenitivo é tanto produtor quanto excretor. As funções orgânicas mais básicas são reinterpretadas segundo a tradição indígena latino-americana e se tornam momento de um processo místico de cura e renovação. André Nogueira ajuda a liberar a poesia brasileira de seu cativeiro universitário. As questões que preocupam a população são analisadas, montadas e interpretadas de novo pela poesia. Contribuição importante da poesia para a sociedade, mas ainda mais importante da sociedade brasileira, em exuberante estado permanente de implosão, para sua raquítica poesia. A força produtiva de Lenin é descoberta na greve histórica dos garis fluminenses, mas a força destrutiva daqueles que ganham a vida manipulando os detritos também é recrutada para a revolução. Muitas vezes nestes versos o hino de júbilo da Apocatastasis é o som de uma descarga. Este Manifesto aponta para a Supernova chamada Junho de 2013 e André Nogueira, como poeta-astrólogo, propõe linhas imaginárias na nova configuração dos astros: Gari e revolucionário formam uma linha; o Manifesto do Partido Comunista e o Novo Testamento outra. E assim vai surgindo a figura do imaginário contemporâneo: entre o somelier e o somaliano; entre o laxante e o relaxante; entre o monopólio midiático e as Capitanias Hereditárias; entre as tábuas do Pentateuco e a Constituição burguesa: Nós, sorrindo, esperançosos entre as ruínas do que não acabou e do que ainda não começou. 

* Orelha escrita para O Manifesto Lenitivo, de André Nogueira, publicado em 2015 pela Editora Urutau. Abaixo o primeiro capítulo do Manifesto, "O Cataclismo dos Catadores", que pode ser conferido integralmente no blog Galinheu Galinhei


CAPÍTULO I.

(O Cataclismo dos Catadores):



Atenção, todos que estão a bordo
e a transbordo
deste bonde –
a sanfona
de foles de alumínio
é sempre mais que a soma
dos cólicos dos intestinos.
Aquele que se senta
e põe no colo
as magras nádegas de um livro
e os outros sessenta
a quem restam os fones de ouvido.
Pensam estar vivos
porque do peixe não se fecham os olhos
enquanto ele flota no óleo
do laticínio “não-perecível”
e rangem os dentes com um ódio
que é de rachar o aparelho ortodôntico
à espera de no próximo dos bondes
assistir a mais um episódio
de desencarne coletivo
se com sorte cavoucar um ângulo inequívoco
de onde a telinha esteja visível.

Mas quem olha de fora do aquário
só vê manchas de gordura nos vidros
e umas cabeças neles batendo, num desmaio
que é demasiado chamar de “vida”.

Vocês, ocos
de atributos divinos:
impotentes, inconscientes... -
onívoros, sim, comem de tudo bem pouco.
No raio de possibilidades
de uma cesta natalícia tão básica
não se pode calcular, senão com um milagre,
algum dia uns ovinhos de páscoa.
Embora os coelhinhos não parem
de se multiplicar...
Onde conseguir aquela delícia de vinho
reservado
aos vestibulinhos da primeira classe
que em seus doze lugares
se sentam com a fórmula de báskhara
e escutam música clássica?

Tenho-lhes a dar umas palavras
indigestas, eu sei, mas precisamos
conversar num mesmo nível
e é para coçarmos nossas calvas
daqui a cem anos
que hoje proclamo este
manifesto lenitivo.
Vocês querem, pois, um livro?
Sempre, quando abro
uma gaveta de achados e perdidos,
entre tocos de lápis
grampos de cabelo gordurentos
e chaveiros com escudos futebolísticos,
encontro uma (ou duas)
amostra grátis
do Novo Testamento
e às vezes uma brochura,
num capricho de papel magenta,
do Manifesto Comunista.

Alguns temem,
sobre as cabeças da gente,
de Lênin
o seu indicador em riste.
Nas universidades há outros
que chupam,
com afinco e minuciosamente,
os bicos dos bebedouros,
dizem-se marxistas porque disputam
nas reuniões de departamento
quem mais estufa as plumas
em torno de alguma questão de alpiste
até que, a miúdo
e com a sintática fineza de um pente,
arrancam o couro
cabeludo
dos colegas grevistas!

Eu pergunto: acaso eles sabem
o que é isso, a “práxis”?
Por mais que gastem
as pontas de seus lápis!
E por mais que brilhe
a nova placa “Carlos Marighella”
sobre a velha, de chumbo e ferrugem:
“Colégio Presidente Médici”.
Só vocês, da cotidiana guerrilha,
é que vão puxar o passado pela goela
e morder com esses dentes tão gastos e sujos
quanto espátulas de self-sérvice!

Vocês, que catam do lixo
e achatam com a botina
(ou até mesmo descalços)
por dia uma centena de latinhas,
se quisessem, por um capricho,
esmagar o mundo,
conseguiriam fácil:
basta que respirem fundo
e todos, a um só toque de tambores,
como um exército de chineses,
instaurem, com ferraduras de aço,
o cataclismo dos catadores –
depois de dois mil e treze,
esse
é o nosso próximo passo.

A “práxis” do dicionário,
a revolução saída da caixa do mágico,
é um papelão risível
mas até que aproveitável para o catador.
Mas seu fardo diário
não vem escrito “frágil”
nem seu cabresto encontra o alívio
de aspas de isopor.

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