terça-feira, 13 de setembro de 2016

Perda e culpa em Julieta, de Almodóvar

Adriana Ugarte no papel de Julieta jovem


Ao contrário do que se disse, Julieta apresenta elementos clássicos do cinema de Almodóvar: o cuidado na escolha da paleta, as relações intensas e conturbadas com as mães, a celebração do sexo como forma intensa de amar, a presença muda e incômoda do passado no presente, a encarnação desta vez megera da diva Rossy de Palma, etc. É verdade que o tom trágico do filme destoa de seus pastelões mais conhecidos, mas não tanto dos outros dramas como A pele que habito, Fale com ela e Abraços partidos. A escolha narrativa em Julieta é pela concentração: foco no tema mais importante e redução nos fundos vivos tão típicos de Almodóvar. O tema do filme é o complicado entrelaçamento entre perda e culpa. Há uma relação de retroalimentação entre os dois sentimentos, um produz o outro num ciclo tortuoso e paralisante de dor.  Esta dor não se desloca no tempo, permanece inalterada desde sua produção. No momento mais feliz de sua vida sem a filha Antía, Julieta diz que quase passava dias sem pensar nela. A possibilidade de um outro fim de vida, fora de Madrid, da Espanha, é bloqueada pelo encontro súbito na rua com Bea, a amiga da filha. O esforço gigantesco de movimento, ainda que mínimo, é revertido brutalmente pelo turbilhão do passado. “Quando um ex-viciado, por mais que tenha ficado limpo por vários anos, recai uma vez, a recaída é fatal”. Pergunta-se para alguém que vive há anos uma perda pela data exata do ocorrido e a resposta será confusa, começará com “ontem”, passará por “hoje de manhã” e terminará em “agora há pouco”, com o rosto lívido.
Em Julieta perda e culpa são dois pólos, ou melhor, dois lados do abismo sem fundo no qual despencam os personagens. (Mais adiante, Antía tentará preencher este vazio com a positividade infinita do fanatismo religioso). Mas o filme mostra que há uma diferença fundamental entre ambos: há um irremediável e um remediável, há um necessário e um contingente, há uma diferença entre a morte inexorável e a decisão de se afastar pela culpabilização de si e do outro. Toda a trama do filme é produzida a partir da repetição de um mesmo movimento: perda produz culpa que produz perda. Em outras palavras: a perda implica numa culpa, culpa de não ter cuidado bem o bastante, independente da arbitrariedade do ocorrido, como o naufrágio de Xuan. Esta culpa, difícil de lidar, porque não se fundamenta em fatos, pode se tornar tão dolorosa quanto a própria perda, caso envolva outras pessoas. Tenta-se expurgar a própria culpa apegando-se à culpa alheia. Nos casos mais graves, como na relação entre Julieta e Antía, produz-se uma nova perda, como tentativa de dar conta da primeira. O mesmo acontece uma geração acima, entre Julieta e seu pai. “Não tenho direito de ser feliz depois da morte de sua mãe?”, ele pergunta. Julieta, culpando-o pelo triste fim de vida de sua mãe, desaparece da vida do pai, quase da mesma forma com que Antía desaparece da sua.
Há algo nesta forma de lidar com a culpa no filme que não afeta os personagens masculinos. Na noite em que se conhecem, Xuan tenta convencer Julieta de que ela não é culpada pelo suicídio do homem no trem. Eles transam no mesmo vagão poucas horas depois, assim como transarão na cama de Xuan e de sua esposa poucas horas depois do enterro. Xuan não desenvolve uma relação de culpa pelo estado de sua esposa e não se impede de se relacionar com Ava e com a própria Julieta. A ausência de culpa, inclusive, abre espaço para novas relações. A esposa acamada de Xuan prenuncia a mãe acamada da própria Julieta, cuidada precariamente pelo pai que não sente culpa em se envolver com a nova criada. Esta culpa que Julieta diz ter passado “como um vírus” à filha, só se supera pela em-patia, pela com-paixão, pelo sofrer juntas. Apenas quando Antía perde o próprio filho, mais um Xuan arrastado pelas águas, ela compreende sua mãe. “Agora entendo o que você deve ter sofrido por minha desaparição. Não podia imaginar. Ninguém que não o tenha sofrido pode imaginar”. Perdão talvez seja uma palavra grande demais para descrever a reunião que acontecerá. O fim do filme parece tratar mais da compreensão, finalmente, de que a dor é comum, de que a perda irreparável é para sempre, mas que aquela produzida pela culpabilização de si ou do outro talvez não seja.

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